(Fecha os olhos, respira fundo e aviva os conselhos.
Reflete)
Tendo a vida deixado de ser vida, a vida continua.
Tendo a vida perdido cor e sabor, ainda continua.
Tendo perdido o Norte e o Sul, partido a bússola em quatro e o coração em mil, a vida continua.
É, não é?
Teimam em querer fazer-me acreditar que o tempo cura tudo. TUDO! Revoltas, quebras de confiança, traições, mentiras, remorsos, amizades em pausa e meios amores. Cura tudo!
É, não é?
Ah, ah, ah… merda que é!
(Perde o foco.
Foge-me).
A vida continua, sim! Como se fosse um carrossel a alta velocidade que não abranda, mesmo que te vomites, que sejas projetado do assento e fiques de cabeça para baixo. Mesmo que partas as pernas, os dentes, os braços e que percas a consciência e o juízo. A vida continua…
Então, desculpem-me!
Têm razão, a vida continua!
O tempo cura tudo?!
Engraçado, que ao fim de tantos dias cheios de tempo a cura vai longe. Mas como assim, o tempo cura tudo? Ficar quietinha, num cantinho, caladinha a ver o tempinho passar, cola um penso milagroso no buraco por onde o ar me foge? Deixar o tempo passar traz alguém de volta? Não, não e também não!
O tempo ensina a adaptar a uma realidade pérfida. O tempo ajuda a esquecer a dor, a esquecer porque sofro e de quem sinto, tanta, falta.
Eu luto contra o tempo, contra o esquecimento e contra uma vida sem ele.
E verdade seja dita, esquecê-lo?! Nunca.
Esquecer que não o tenho, que o perdi, que o quero tanto… E que dava, sem mãos a medir, tudo o que feliz me espera, para me encostar ao peito e lhe ouvir o coração. Para lhe sentir o cheiro, a pele, o toque e o amor. Que desaprendesse a escrever, que vivesse só… Que perdesse eu tudo!
Nos desesperos incuráveis e estáticos tendo ser egoísta, sou-o de facto.
Dou por mim, quase, a desejar que ele tivesse ido de forma mais previsível. Dou por mim a suplicar que ele me apareça em sonhos e miragens. A querer acordar deste pesadelo, de viver uma vida que não para e num tempo que cura tudo.
Combato a normalidade todos os dias. Numa guerra infinita e que dá tréguas.
Simultaneamente, luto por mim também.
O chão que ainda confio a minha sanidade tremeu.
Perdi o rumo, outra vez. No entanto, já não o perco tantas vezes.
Mas a cada esquina uma nova e velha memória, uma surpresa, uma música, uma presença, um barulho estranho e agora uma mica de plástico.
Um dossier com documentos, que já havia visto e não lido.
Um dossier que é mal pousado, que cai e que eu apanho quando saio gelada do banho.
No chão uma mica de plástico solta, lá dentro uma folha ao contrário. Endireito e leio. As gotas de água que não enxuguei escorrem pelas pernas.
Há palavras que me dão vómitos, me enojam e me roubam o fôlego. Há quatro números que me desordenam a alma.
08:35.
É real.
Não lhe sei dos segundos que acompanham os minutos daquela hora fatídica.
Descobri-lhe a hora exata, a hora que o relógio dele parou. Várias são as vezes que penso que nascemos com cronómetros, gigantes e invisíveis, suspensos e presos nos nossos cachaços. Onde o tempo, que cura tudo, vai mingando até morrermos. E quando o último suspiro se ouve, o relógio desvenda a hora.
Ensurdeço com dúvidas. Que fazia eu a essa hora, a milhares de quilómetros, com um oceano no caminho e com cinco horas de diferença? Que sonho me iludia, que falsa calma, que sono profundo dormia, com que sossego me deitei?
O meu corpo dormia como nunca mais igual. E eu que nunca tive hora que detestasse, não nutro ódio por nenhuma outra.
(Enterra os dedos nos olhos, guarda os papéis, veste-se e sai. Algures no caminho, voltou a ver).
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