O cupido que me estava destinado deve ter sido condecorado como melhor aluno da escola. Chegado o derradeiro momento de lançar a seta na minha direção, acertou em cheio e deixou-me em coma de amor, por quase uma década.
O 14 de Fevereiro é o dia do amor. No entanto, achava que esse dia pertencia apenas aos eternos apaixonados, aqueles que sentem um amor para a vida toda. (Como canta a Carolina). Por esse motivo, e quando fiquei solteira, risquei-o do calendário. Ignorando que o amor tem muitas formas e dimensões.
Num São Valentim, cujo ano não importa, quis o cupido mostrar-me que nenhum dia deve ser ignorado, especialmente o do amor. E eu tive o melhor dia de São Valentim da minha vida com um, quase, estranho.
Eu conto-vos como foi.
Estatelada no chão contemplava o nada. Embalada pela chuva pensei na aula de salsa que havia planeado fazer, mas derrotada e apática padeci ali. Fechei os olhos e a Alice gritou-me:
– Vai-te calçar que vamos dançar. Sim, vamos sozinhas! Anda.
E fomos, porque quando a Alice decide contrariar as más energias que me afogam não a consigo impedir. E ainda bem que fomos.
A Alice pediu um Gin tónico e levou-me para a pista. Quem lá estava reagiu á minha aparente solidão, mal sabiam eles que não estava sozinha. Uma vez que a aula é de grupo todos os alunos dançam uns com os outros, e entre os ritmos latinos, passos mal dados, sorrisos tímidos e os olhos brilhantes da Alice ele chegou. Atrasado e subtil, como sempre, infiltrou-se no grupo e dançámos sorridentes. Horas se passaram a suar e a tocar em dezenas de mãos desconhecidas. Sem maldade ou outras intenções se não as de aprender a dançar.
Preparava-me para abalar quando uma voz de Homem, forte e desconhecida ecoou atrás de mim:
– Porquê tão séria? – Ouvi enquanto engolia apressadamente – Posso convidar-te para dançar?
Não respondi, duas mãos estavam estendidas na minha direção e coloquei as minhas sobre as dele. Segurou-me com firmeza e guiou-me pela pista, rodopiando-me e testando os meus poucos conhecimentos. Assim que a música terminou descolei dele, encenei uma vénia real e saí da pista:
– Vou ser evasivo, intrometido e talvez inconveniente… Tens planos para amanhã? Posso convidar-te para sair?
– Amanhã? Dia 14 de Fevereiro? – Franzi, desconfiadamente, as sobrancelhas.
– Se hoje é dia 13 amanhã é 14…
– Vinho, Moulin Rouge, Estranho caso de Benjamin Button, três pacotes de lenços e dormir. Desculpa, não celebro o dia de São Valentim. Não gosto de flores, prendas ou de jantar em restaurantes com pouco espaço e preços absurdos. – Respondi mal-humorada.
– É justo, ninguém me mandou armar em esperto. Olha, perguntei apenas porque será a minha última noite no país. Sei que é uma data complicada para quem está solteiro, porque não ser complicada a dois, desconhecidos?
– Pois… eu entendo. Acho que não é boa ideia. Só isso. Faz boa viagem!
– Este é o meu número, amanhã às 18h vou-te buscar. Basta apenas enviares-me a morada, se quiseres. – Entregou-me um papel e rematou com um beijo na minha mão.
No caminho para casa telefonei à minha confidente e descrevi o descaramento daquele dançarino. No entanto, ela não apoiou a minha decisão:
– O que tens a perder? Não achas que está na hora de viveres um bocadinho? Partilha a tua localização comigo e vai.
– O que é que eu tenho a ganhar? Eu não vou.
Mas fui. No dia seguinte, às 15h, e a fazer-me de difícil, enviei o nome da minha rua com o número de porta diferente, mas próximo, do meu. Dois minutos depois: “ Traz o teu vinho favorito, vejo-te às 18h”.
18h e ele estava fora do carro em frente a uma casa que não era a minha. Sorriu-me e estendeu uma flor:
– Uma flor não são flores e o jantar está no carro. Vamos fazer um piquenique! Feliz dia de São Valentim!
Levou-me para um caminho-de-ferro abandonado iluminado apenas pela luz da lua e das estrelas. Abrimos a garrafa de Muralhas e falámos durante horas. Horas. A vantagem de sermos dois desconhecidos a partilhar uma refeição, não houve silêncio, conversas repetidas, opiniões formadas, temas tabu, expectativas ou medos. Apenas o reflexo da lua nos pratos de plástico, risos que ecoaram pelo ar e o São Valentim mais romântico da minha existência. Com um estranho. Quando o vinho acabou, as horas tardaram e o frio incomodou demos a noite por encerrada:
– Dás-me a honra desta dança?
Reconheci aquele gesto do dia anterior, sorri e pousei a minha mão na dele. No silêncio dançámos. Sem música ou vergonhas. Sem gestos inapropriados, sem intenções maliciosas e sem falta de dança. Apeteceu-me chorar, não por ele mas por nunca ter vivido identicamente com quem realmente amei. Apeteceu-me chorar porque um estranho fez por mim mais do que qualquer outra pessoa. Apeteceu chorar mas não chorei, não ali.
Bati a porta do carro sem troca de redes sociais ou apelidos. Sabendo que não o voltaria a ver. Entrei em casa e atirei-me para a cama. Com a cabeça pousada nas palmas das mãos entrelaçadas fiquei ali, a decifrar a relevância desta noite na minha vida. Sentia-me livre e feliz. Pela primeira vez desde que solteira, sentia-me viva. A tela brilhante do meu telemóvel deu tréguas à escuridão que me circundava: “Obrigada. Que a vida te permita sorrir, tens o sorriso mais bonito de todos. Até um dia pequena.”
Quis responder mas adormeci a pensar na resposta. Dormi tranquila e leve. Dormi demais. Quando acordei, procurei o telefone que se aconchegava nos lençóis e escrevi: “Não… obrigada eu Valentim!” Mas a mensagem não foi entregue. Mas nunca mais soube dele. Mas nunca mais o vi. Nem a ele, nem ao medo que tinha do amor.
2 Comments
Fantástico 🙂 Adorei o texto, estava a ler a imaginar esse jantar excelente que tiveste…
Mais um vez PARABÉNS pelo excelente texto…
Beijinho grande
Fantástico como todos os textos que escreves… nunca deixes de escrever 😊