Na casa da Bó há uma grande, grande árvore. Mais velha que eu, mais velha que todos os que leem isto. Ainda vive, ainda enraíza memórias por quem por ela passa ou toca.
Essa árvore suportou o peso da minha irmã, primos e o meu. Talvez tenha baloiçado também o meu pai, tias, a Carmélia e o João. Passávamos horas a trepar aqueles ramos e a desafiar as alturas. Aquela é a minha árvore favorita, porque guarda segmentos da minha infância, tem cravada as minhas iniciais e pertence ao jardim da Carmélia.
Quase Camélia, como as flores. Mas a Carmélia é vida em flor.
A Carmélia é uma moça viúva, encurralada num corpo antigo. Independente, capaz e viajante do mundo. Enquanto as pernas a acompanharem não há sítio que recuse visitar. (Talvez o desejo de ir viaje através do ADN). Tem 86 anos, a face esculpida com rugas felizes e cicatrizes de dor. Os calos de uma vida de trabalho salientam-lhe as mãos e as varizes pintam-lhe as pernas. Mesmo que a vida lhe tenha sido madrasta, ela engole a dor e nunca falta com um sorriso sincero. Um sorriso que lembra os dias quentes de Verão.
Na verdade, nunca falta com nada.
É uma avó de armas. Um exemplo de delicadeza, prudência, imparcialidade e generosidade. Uma avó que nunca ouvi cantar ou vi dançar. Colhe, literalmente, o que semeia. É lavradora, regadora de terras e nunca pede ajuda. Não por ser casmurra, mas porque não gosta que os outros fujam à sua rotina por ela.
Não me chama pelo meu nome. Trata-me por menina ou filha. E eu trato-a por Bó. Ou por você, quando não consigo dar a volta às frases. A Carmélia é a única pessoa no planeta a quem trato por “você”, não porque seja fino ou porque “tu” seja impessoal e desrespeitoso. “Você” é o pronome pessoal que sempre ouvi, aquando dirigido a ela, e por isso assim ficou.
No regaço guarda o meu santuário. O lugar que quando encosto a cabeça me faz esquecer o mundo. Desde pequena até então. A minha avó dá-me paz. É um poço de paciência e serenidade. Nunca a ouvi alterar a voz, a gritar ou a discutir. Talvez guarde para si, talvez o tenha feito nas minhas costas. Nunca me gritou ou bateu. Mesmo quando amassava mal os folares e atirava a massa crua contra a minha irmã. Mesmo quando deixei fugir o cão. Mesmo quando não comia. Mesmo quando em pleno Inverno, queria sair de casa em mini-saia e t-shirt. O que ela fazia era diferente, era uma abordagem à Carmélia. Colocava-me um xaile pelas costas, limpava a cara da minha irmã, olhava-me desiludida e passava-me a mão pela cabeça. Se eu não gostasse da comida, o que raramente acontecia, ela cozinhava outra coisa. Comprava regueifa e pão de Deus. E quando a época da galiota chegava, comprava quilos, porque eu era (e sou) perdida por isso.
A Carmélia salvou-me a alma. Escuta-me como um ser humano deve ouvir o outro. De mãos vazias em cima da mesa, de olhos postos em mim e de boca cerrada até me remeter ao silêncio. Nunca me ordenou, criticou, revirou os olhos ou bufou tédio. Sussurrou-me os melhores conselhos e guarda os meus segredos como mais ninguém. Disto tenho eu certeza absoluta. Até hoje não percebo a sua facilidade em se adaptar aos tempos modernos. Até hoje desconheço como tão bem entende todas as caras do amor. Quando só amou uma vez, à moda antiga e para a vida toda. E nunca me comparou a ela, ou ao seu companheiro. O João, dos olhos perdidos em azul.
Bó, o medo de não a voltar a sentir é do tamanho do amor que lhe guardo. É a primeira, ou segunda, do par que mais me custa despedir. Para quem os meus pés correm apressadamente e as mãos urgem em apertar.
Bó, eu conto os segundos.
Mesmo que eu não saiba quando, espere por mim que eu volto.
Por favor, espere.
Eu volto.
/a menina.
2 Comments
Olá, sei o que é tudo o que escreveste só que a minha Bó Birinha, já não pode esperar. De um dia em Franca recuperação ao dia seguinte a mais dura notícia.. foi senhora de um amor só e para a vida toda, ficou só com pouco mais de 30 com 6 filhos. Acabou por partir ainda antes dos 70.. Não era tão cheia de vida com a tua Bó, circunstâncias da vida. também tínhamos uma árvore onde nos dias quentes de verão nos perdíamos a brincar, uma senhora Figueira que na sua época de dar fruto nos acolhia com todo o seu esplendor nos seus ramos, coitada dela passou tanto com 4 netos todos da mesma idade literalmente.. aproveita os momentos com a tua Bó custa tanto quando elas se vão.. por aqui já passaram 8 anos e a saudade continua.. um grande beijo para a Bósnia carmelia
Obrigada 😢 Vejo tanto da minha Bó neste teu texto…
Pena que todas as “Bó”s deste mundo não sejam eternas.
❤