Esta é para ti, que vives dentro de mim. Sem convite, sem pagar renda.
Que te alimentas da minha fragilidade, da falta de amor que me tenho e das minhas expectativas que esperam, eternamente, uma boleia que chega à velocidade de uma tartaruga.

Quem te convidou?

Pertences à noite, criatura sombria. Tens pernas, mas não andas. Não queres andar, não me deixas andar. Ouço-te a rir, quando uma ideia bonita me traz adrenalina. Tentas, a todo o meu custo, que me sinta e seja como tu. Patética, mesquinha, frustrada, preguiçosa e doente.
Como vives dentro, conheces bem os meus cantos sofridos. A caixa que guarda os meus sonhos falhados, é a tua mesa favorita. E a velocidade vagarosa a que os meus objetivos se cumprem, é a tua refeição favorita.

Mas tu não pertences aqui! Nem foste convidada!

Quem és tu? Quem te convidou a entrar?
Fui eu. Sem querer. Faltam-me forças para te expulsar, para te deixar ir.

Não sabia que a tristeza te trazia no bico. Não sabia que para haver luz, não bastava só trocar a lâmpada, eram precisas ligações, contratos, pagamentos e forças para levantar o interruptor.
Ganho ao contrariar-te. Ganho quando retribuo com um sorriso à tua gargalhada provocadora:

“Vais treinar, porquê? Vais-te maquilhar, para quem? Vais tirar o pijama, para ir onde?”

És o mais feio que existe em mim.
Quero-te fora, mas preciso de ferramentas e de ajuda. Tal como quem constrói uma casa e não sabe como. Tal como quem quer um dente, podre, arrancado e procura um dentista.

Calei-te e saí de casa.

Entrei no elevador, pisei o quarto andar e toquei à campainha. Tu ligaste as colunas e encheste a minha casa de barulho. Chamaste-me de louca, de tolinha, de fraca. A porta abriu e sentei-me no cadeirão. Falei, chorei e tu foste encolhendo. Como uma peça de roupa mal lavada.
Já não me serves.
Eu já não te sirvo.
Assim te foste, assim te vais indo.
Espera!
Sabe que te guardo um quarto. Quando todes te expulsarem e não tiveres para onde ir, sabe que podes cá voltar. Já saberei como te acolher, sem que sugues tudo o que já cá habita. Sem que ocupes todas as minhas divisões.

No cadeirão, foi-me dada uma redoma para proteger o meu íntimo. A minha essência. Essa redoma evita que outres, ou eu, me magoem. Nada o trespassa, porque se o permitir perco-me de vez. Como a rosa protegida do filme “A Bela e o monstro”, viste?

Saí do consultório, não dessa vez mas depois de muitas vezes, sentada numa nuvem voadora. Como as do Super Mario, sabes do que escrevo? Daqui vejo tudo. Tudo são os outros, os problemas dos outros e os meus também. Tento abordá-los cá de cima, várias vezes perco a calma e desço de rompante até, quase, chegar ao chão.
Depois, subo. Fico cá em cima, a vê-los e a ouvi-los.

Aprendi, com as ferramentas que me deram, a achar-lhes graça. Aos problemas, aos egos, às expectativas, às desilusões e à falta de coragem em se ser melhor humano. A desvalorizá-los e a valorizar o meu saudável, e recomendável, estado mental. Não quero voltar a deixar que algo me fira, tão profundamente que eu sinta que a dor é para sempre. E por nada… é nada. Mesmo que esse nada seja alguém. Mesmo que esse nada seja eu ou tu.

Egoísta? Não!
Consciente, sim.
E tu, quando ninguém te quiser, sabe que podes cá voltar.
Abraçar-te, com limites, é não ter medo de ti.

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