O dia foi feliz, pensava eu. Ela estava estranha. Estranha, como quando num grupo alegre, todos se divertem menos a tua amiga. E tu ficas sem jeito. Ela foi essa amiga, o dia todo. Pensando bem, o dia não foi feliz para ela.
Fechou a porta de casa lentamente, com as duas mãos na superfície branca. Respirou fundo. Aliviada por estar sozinha. Desejou também que eu ali não estivesse, mas não faz mal. Reuni episódios deste dia, supostamente feliz, e projetei-os no seu pensamento. Nada. Ela não sentiu nada. Como se recusasse a sentir.
Cozinhou frango com cogumelos. Ela adora cogumelos, a cura para todos os males, e por isso fiquei descansada. Com o cabelo mal apanhado, a t-shirt vestida, aquela que patrocina a marca da cerveja, e descalça sentou-se à mesa. Percebi que ela não tinha paladar. Tudo sabia a cinzas. Pousou os talheres, limpou a boca e correu para a gaveta dos papéis. Procurou a única caneta que habita nesta casa e fez uma lista: comprar viagem; vender o carro; as duas semanas de despedimento; a tia e o apartamento; banco; seguros; o Jonathan e a Aurora. Finalizou, rabiscando: “VOLTAR PARA CASA”.
Num ato de fúria varreu tudo para o chão e caiu de joelhos, numa agonia e sufoco incomparáveis. Encostada à parede bege desabafou: “tenho tantas saudades. Raios partam as saudades!”. Olhei-a nos olhos, falava de quem ama. Chorou. Por tanto tempo, um choro tão sofrido e sem som. Estatelada no chão frio e sozinha. A mão direita suportava a cabeça, o joelho direito aguentava o cotovelo e a mão esquerda agarrava no peito. Como se impedisse o coração de fugir para Portugal.
Entrei em pânico. Não consegui pensar, falar, remediar. Paralisei.
Ficámos ali, até que a maquilhagem esborratada secou e não havia mais para chorar. Apressadamente olhei em redor, procurava uma saída, algo que a fizesse levantar daquele buraco. E lembrei dos três diários. Voei até ao pensamento dela, esperei uma pausa entre as imagens que via e desenhei-lhe os cadernos. Resultou.
Foram três os diários que ela trouxe de Portugal. Obrigou os que ama a escreverem a receita mágica para a saudade. Para combater momentos como estes. Palavras, fotografias e histórias. Leu-os todos, as lágrimas escorriam mas as gargalhadas também se faziam ouvir. Pegou no telemóvel, gravou vídeos e enviou-lhes. Não foram vídeos felizes. A maquilhagem escorrida até ao nariz, os olhos vermelhos, a voz trémula e as palavras pesadas:
– Sabes que eles estão a dormir e quando acordarem vão se assustar? – Interrompi-a.
Ela encolheu os ombros:
– Olha, agora já está! Temos um pacto, não temos? Para o bem e para o mal. – Retorquiu envergonhada e cheia de mau-feitio.
É assim que combatemos a saudade. Há rotinas a que ela volta, palavras que repete, cheiros que relembra, hábitos que não esquece. Ao Domingo de manhã, liga para Portugal para ver a família que se reúne ao almoço. Está presente em todos os aniversários, por videochamada. Os cappuccinos e os copos de vinho com as amigas são agora virtuais, mas ainda duram! Durante a semana fala com todos os que se lembra, não desliga do telemóvel por um segundo. É ele a ponte diária para os que longe ficaram.
Vai à praia para sentir a areia e a água salgada do mar, mas nada é o mesmo. Nada sabe a casa. Nem a chuva que bate agora na janela, se assemelha ao que ouvíamos. O que mais dói são os sonhos. Centenas de sonhos que, alimentados por medos, a fazem chorar enquanto dorme. Onde Portugal não a reconhece ou aceita de volta, olhando-a como um fracasso.
Quando a saudade a deixa desamparada, esta vida de emigrante perde sentido.
Calçou as sapatilhas para ir correr, mas não a deixei. Era já tarde e escuro. Fomos dormir.
Na manhã seguinte, todos responderam ao vídeo que receberam. Mas nenhum deles concordou ou incentivou que ela voasse para casa. Eu agradeço por isso, ainda não chegou a hora. Quando chegar eu sou a primeira a empacotar as tralhas. Até lá, não se preocupem eu cuido dela.
/Alice
1 Comment
Absolutamente fascinante!! A saudade…
Não importa o dialeto em que se tente traduzir, nada significa tanto como “saudade”! Nada tem tanto cheiro, cor, afeto, aconchego e nostalgia como saudade. Saudade dos que estão lá, no sítio onde podíamos ser 100% mas onde os sonhos não se realizam.
Extraordinária descrição, parabéns Michelle, um beijo.