Uma casa desfeita, desprezada pelo rosto bonito do amor. Desejariam eles que os pratos e vasos fossem de plástico, por todas as vezes que o chão se cobriu de estilhaços de vidro. Naquela casa o amor e ódio andaram de mão dada, e eles também. Tinha dias.

Conheceram-se na noite mais quente do Verão, há uma década. Fizeram juras de amor ali mesmo. Promessas para toda a vida, amaldiçoando-se eternamente. Sem saber.
Eram um do outro, batatas da mesma colheita, reflexos do mesmo espelho, ciumentos em igual medida e leais em cada pestanejar. Contudo, não perfeitos: ele não sabia falar de amor.

A estima por uma linguagem desaprendida afastou o querer. O respeito perdeu rumo, a confiança ganhou atrevimento e o desvario cegou-lhes a íris. Nenhum dos dois se deixava, o medo da solidão eterna paralisava, ficavam juntos pelos maus hábitos. Esperando um milagre que os fizesse dançar juntos, que os fizesse encontrar-se algures no meio do alfabeto.
Noites de barulho. Noites de conchinha. Noites de perdas de voz, de amor bruto, de lágrimas doentes, de bateres de portas, de beijos sofridos, de despedidas sem saída, de palavras más lançadas ao vento. De promessas, de ameaças, cansaços e juras para todo o sempre e para nunca mais.

Ai, que amor tão doente…

Odiavam-se e amavam-se em igual quantia, numa casa que nunca foi lar. Num amor miragem. Numa equação complicada, onde ele e ela eram dois só às vezes.
Mas ele nunca soube falar de amor…
Ela fez-se querer que o entendia. Quis-se professora de línguas. Quis-se capaz de o mudar, de lhe dar amor suficiente para os dois. Quis-se merecedora só daquilo. Daquele amor enfermo, egoísta, ciumento, traiçoeiro, mentiroso mas leal. Sempre leal, ele sempre voltava a ela. Sempre ela voltava a ele:

– Eu quero dançar contigo.

Disse-lhe outro alguém num dia que o alguém dela saiu de casa, mais uma vez.
Ela não esperou pelo fugitivo. Mudou as fechaduras do coração e foi dançar.
E não mais voltou à carcaça que deixou na casa, desejada, de papel.

Não mais lhe voltou, mas levou aquele amor morto no bolso do casaco. Foi lhe leal, é-lhe leal. Vai ser-lhe leal até que o sol se deixe de pôr, até que o sol deixe de nascer, até que o sol morra, exploda e deixe de brilhar.
Porque eles se conheceram num dia que o sol aqueceu de mais, se amaram no primeiro encontro de íris, se juraram para a vida toda. São leais porque se amaram desvairadamente, inconscientes, irresponsáveis e ignorantes de um amor tão profundo e simples.
Ela e ele.
Clandestinos, sozinhos no silêncio, juntos nos apertos do coração quando as músicas antigas lhes trazem memórias boas. Quando as pessoas morrem, quando a saudade aperta. Juntos nas datas que um, qualquer, calendário relembra.
Leais às promessas dos dedos mindinhos.
Inexistentes a tudo o que é resto.
Vivos em mundos diferentes, a galáxias de distância.

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