Deixa que te conte um segredo.
Estou em little Italy, sentada numa mesa coberta em quadrículas vermelhas. Acabei de dizer adeus.
Sinto-me como no final de um filme. A música final ganha volume, a câmara afasta-se e fico eu. Serena, com um vinho tinto na mão esquerda e uma caneta presa no polegar e indicador direito.
Que passem os créditos finais, que se revelem quem dá vida aos personagens que pintam esta história.
Digo adeus a Nova Iorque com muito amor, mais do que esperava alguma vez ter.
Deixa que te conte um segredo.
Pensava eu que voltar a sentir com um coração estilhaçado era mito. Só acontecia aos outros. Julgava eu que, quando se ama desvairadamente, se perde o juízo pelo caminho e não voltamos a amar. É mentira, ou talvez seja só meia verdade. Voltar a amar é possível, mas nunca da mesma maneira que um dia amámos. É diferente, é melhor.
Quando já tinha desaprendido e desacreditado, dei razão aos velhos sábios que um dia me alertaram que isto aconteceria. Sem esperar, sem dar conta. Sem dar conta, apaixonei-me em Nova Iorque. Vivi o que um dia desejei viver, o que os filmes me fizeram sonhar.
Parece cliché, mas não é.
Tentei viver um romance nova-iorquino a todo o custo. E só para me contrariar, não aconteceu quando quis. Esforcei-me em demasia.
Obriguei-me a estar de corpo presente em encontros amorosos que me entediavam. Ignorei a pouca atenção que davam ao som das minhas palavras e aos olhares arregalados para a minha traseira. Ignorei também a dependência precoce, os arranques propositados e barulhentos do carro, a pressão em responder a mensagens e as explicações exigidas quando não atendia o telemóvel.
Ignorei porque queria voltar a amar.
Ignorei porque queria o amor em Nova Iorque.
Felizmente, não me ignorei a mim.
Quando ultrapassaram os meus limites de sanidade mental, mandei o amor nova-iorquino dar uma volta ao bilhar grande.
Talvez não estivesse escrito nas minhas estrelas.
Talvez este desejo fosse mais uma das ilusões românticas que a Alice me semeia.
Pois bem, estava enganada.
Num final de tarde, dei por mim numa mesa de um café à espera dele. Ele, que travei contacto através da modernidade atual dos encontros. Vesti preto da cabeça aos pés, sem nenhuma razão aparente.
Ele chegou atrasado.
Eu detesto que me façam esperar.
Começámos bem.
Quis ir embora, mas esperei. E ainda bem que esperei.
Ele chegou ofegante. Loiro e de olhos verdes, que eu achava que eram azuis. Prendeu-me num abraço fugaz e apertado, e sorrimos. Talvez de nervosismo, sorrimos os dois.
Falámos durante horas, sentados em sofás de veludo verde-esmeralda, numa sala camuflada em pinturas romanas antigas e ao som de uma mulher que colava os lábios num microfone antigo. Ele apontou os meus anéis e colares. Os meus ornamentos de amor. Eu atentei nas cicatrizes das mãos, no sotaque e variações da voz. Ele escuta, ele questiona, ele olha-me tão intensamente que me intimida. Que me impede de manter contacto visual.
Prolongámos o encontro para um jantar, para vários copos de vinho tinto e quando dei conta já ele sabia em demasia. Dei-lhe demais de mim, mais do que havia planeado. Ele ouviu e deu-me dele, encontrando-me a meio caminho.
A noite estava quente, caminhávamos lado-a-lado pela cidade que nunca dorme:
– Vem ali um Samoyed, o cão do teu livro. Vou pedir para fazeres uma festinha.
– Não precisas. – Corei sorridente.
Gentilmente ele parou o dono, o cão e eu de voz aguçada mimei o animal.
As luzes dos grandes prédios iluminava-nos o rosto, os táxis amarelos corriam pela estrada, ouviam-se buzinas impacientes, oradores loucos, sirenes urgentes e os batuques dos comboios subterrâneos. E foi na entrada de um metro que nos despedimos. Ele revelou que não ficaria em Nova Iorque, e eu fiz o mesmo:
– Volto para Portugal em breve.
Despedimo-nos. Com algum brilho no olhar, com o mesmo sorriso e com a incerteza se nos voltaríamos a ver. Seria razoável não nos voltarmos a ver. Mas isso não aconteceu.
Houve um segundo encontro, num restaurante onde os chefes de sala nos apresentaram aos cozinheiros gritando os nossos nomes em plenos pulmões. Terminámos sentados na calçada a comer gomas coloridas e a discutir amores passados.
Houve um terceiro encontro, onde enchemos a cara de sobremesas gordas e completamente desnecessárias. Onde em East Village ele deslizou a mão pela minha, eu espacei os dedos e sorri.
Houve um quarto, quinto, sexto e sétimo. Onde ele revelou que recorre ao Google para perceber o que tanto escrevo em português. Onde discutimos a profundidade das minhas palavras e mensagens, dos meus planos e medos, dos meus gostos e fraquezas. Ensinei-lhe algumas palavras em português. Apresentei-lhe o bacalhau, o caldo verde, o vinho tuga e o fado. Decorámos aniversários, cores favoritas e nomes de família. Assistimos a clássicos de cinema, discutimos filmes, músicas e lugares do mundo. Esgotámos a bateria do telemóvel em conversa fiada. Corremos bibliotecas, tascos, bares, concertos, metros, comboios, parques e pracetas.
Falámos da saudade, da morte e do amor. E sem prever, quando esperávamos que o boneco verde nos permitisse atravessar a rua, ele beijou-me. Fazendo-me rodopiar pelo ar. Eu ri.
Ri muito.
“O primeiro beijo apaixonado não é enclausurado em quatro paredes.” Escrevi, não sei onde.
Ele deu-lhes vida.
Ele tornou claro que eu nunca soube o que é viver em paz e amor. Ele relembrou-me o quão fácil isto é.
Ele mostrou-me Nova Iorque como nunca antes havia visto. Ele levou-me pela mão, não se poupou em palavras e não guardou sentimentos. Todo o tempo livre foi passado juntos, com dores de barriga de tanto rir. Com olhares demorados e pausas pensativas.
Ele pensava tão alto que o conseguia ouvir…
Na hora de dizer adeus ele não escondeu o coração.
E doeu. A hora da despedida doeu mais do que o previsto. Foi demorada e arrastada. Conformada e triste. Esperançosa e mutilada pela realidade.
Quis eu um amor que falasse inglês e a língua dos mudos. Que me fizesse deambular pelos becos nova-iorquinos e fosse cenário dos filmes românticos. Pois bem, é este o meu fado feliz.
Faria de novo, não perderia nenhum minuto por medo de me enamorar.
Faria de novo, faria tudo de novo.
Este é o meu filme.
Nunca me vi eu em história mais bonita que esta.
3 Comments
“O primeiro beijo apaixonado não é enclausurado em quatro paredes.”
Ai, caraças… Fazes-me sempre chorar, mas hoje especialmente.
O amor é a melhor coisa do mundo ❤️
Tu escreves tão bem coração 🤗 a menina com os olhos e sorriso cheios de sonhos. Sempre os tiveste. Muita sorte. Beijo