Quando as cartas pokémons, os tazos da Matutano, o diablo, os cromos de futebol e a revista Bravo passaram de moda, questionei a finalidade em crescer. Quando as Spice Girls, os Backstreet Boys e os NSYNC, amigavelmente se separaram tive a certeza que crescer era uma armadilha. Seguiram-se os trabalhos de Verão, a carta de condução, a gasolina e os desgostos amorosos. Porque tive tanta pressa em crescer? Crescer não tem piada nenhuma.
Era este o meu pensamento até viver sozinha.
A minha casa é um mini parque de diversões sem algodão doce, pipocas ou carrosséis . Exceto quando, distraída, falhei os últimos três degraus das escadas e me estampei contra a parede. Andei de montanha russa sem pagar bilhete. Desmanchei-me a rir e desejei que alguém ali estivesse, para testemunhar aquela viagem alucinante.
Nunca antes desejei viver sozinha. No plano ancestral, por mim idealizado, sairia do ninho para viver com a minha cara-metade. Mas fiquei solteira. Mas atravessei o Atlântico. Mas vivo sozinha. Honestamente, e estando a celebrar um ano de convivência a solo, confesso que receio viver com alguém. Tenho hábitos demasiadamente espontâneos e pouco refletidos, que assustariam qualquer homem das cavernas. Como deixo alguém invadir o meu pedacinho de céu, a minha casa da árvore, a minha tenda de plástico que, em criança, sempre desejei mas nunca tive? Partilhar todo um conhecimento apreendido, um armário divido por cores e com peças de roupa que, etiquetadas, não servem. Mas que pertencem ali a aguardar o dia para sair à rua, que todos sabemos que nunca vai acontecer.
Enquanto me debato com esta preocupação, por agora inexistente, aproveito para viver à minha maneira. Sem regras, toques de recolher, horas de refeição e planos de limpeza. Sendo que as vozes de quem me criou assombram-me a consciência quando faço, ou não, certas coisas.
Viver sozinha é como jogar à apanhada nos recreios, de quinze minutos, da escola. Estou à vontade, mas não à vontadinha. Exceto ao Domingo (os Domingos são como os dias inesperados de greve). Impus-me regras de habitabilidade, bem-estar, higiénicas e alimentares. São regras estipuladas e seguidas por mim. E só assim vivo em harmonia, sem discussões ou desilusões comigo mesma. Partilho-vos parte do livro de código do meu lar:
– Descalço-me sempre que passo a porta de entrada, salvo quando me esqueço.
– Alimentar-me é regra de ouro. Como o que me apetece, à hora que me apetece e onde me apetece. Comer cereais só até às 16h. Chocapic não é jantar, é malandrice.
– Loiça suja empilhada, roupa espalhada, cabelos no chão, toalhas molhadas em cima da cama e pasta dos dentes seca no lavatório é estritamente proibido. Sem perdões ou negociações.
– Incomodar os vizinhos, mesmo que todos sejam literalmente família, só no caso de inundações ou acidentes. Tudo o resto é “desenrascável”. Sou portuguesa nortenha, tenho sangue na guelra e criatividade não me falta. Tudo tem solução. Por exemplo, na minha casa não há saca-rolhas. Nunca calhou em comprar, abro as garrafas de vinho com um martelo e um parafuso. Dá espanto mas funciona, (certamente que enche de orgulho os homens da minha vida).
– Não cozinhar por falta de utensílios é desculpa para encomendar pizza. Não tenho varinha mágica, rolo da massa ou esmagador, no entanto não deixo de fazer puré ou hummus. Recorrendo a um copo raso de vidro, esmago tudo o que me apetece. Fica com alguma consistência, grumos e imperfeições. Demora o dobro do tempo mas ninguém, para ali de mim, espera pela comida. Com um bom copo de vinho, música ambiente e despreocupações de empratamento ofereço-me sempre um bom pitéu.
– A cama é feita algures durante o dia, para que os ácaros de estimação morram com o arejamento dos lençóis. Se, por algum motivo e esporadicamente, não a fizer ninguém me vai gritar aos ouvidos ou enviar um sms violento.
– O sofá vermelho da sala não é depósito para o que nas mãos trago quando chego a casa. Carteira, casaco, computador, saquinhos e sacolas não são aceites em cima dos assentos felpudos. Nomeei as cadeiras da cozinha, mal envernizadas, para essa função.
– Não há dress-code ou punição por falta de roupa. Andar nua pela casa é da minha preferência e estado de humor, aquando sozinha. Sendo que sou a única com total permissão para o fazer. Que nenhum convidado, em que circunstância for, se sinta na liberdade de se despir e de atirar a roupa de rua para o meu sofá, imaculadamente, vermelho.
– Limpar a casa, a fundo, acontece quando estou com a neura. Movida pelos nervos até os azulejos do quarto de banho esfrego com uma escova de dentes. No entanto, se nada me apoquentar a alma, faço convites semanais de almoço ou jantar para que me sinta na obrigação de apresentar uma casa asseada. Não tenciono nunca dar razão à minha mãe que ralhava “quando viveres sozinha a tua casa vai ser um curral dos porcos!”, ou “eu tinha vergonha de ter o meu quarto assim!”.
(Façamos uma pausa para relembrar quando a minha mãe cá me visitou. Lançada, como só ela, desceu as escadas e depositou TUDO em cima do meu sofá. Por TUDO entenda-se mala de viagem, luvas, casaco, carteira e saquinhos. Ah, também não tirou os sapatos à porta. Escusado será descrever a minha cara de satisfação quando lhe disse o que há anos guardado estava no meu baú. Aquele baú das coisas para dizer um dia à mãe, quando a oportunidade se revelar:
– Enquanto estiveres debaixo do meu teto, estas são as regras as cumprir. – Sorri maleficamente, ela matou-me com o olhar e fiquemos por aqui).
Como em todas as casas também a minha tem os seus truques, barulhos inesperados e tristezas escondidas. A minha mesa de jantar é uma delas. Partilhar uma refeição nela lembra-me que estou à distância, de um oceano, e por isso não o faço. O chão da minha casa não é o meu sítio de eleição para sentar ou deitar, relembra-me quando me afogo em saudade e deslizo sofridamente pelas paredes até ele. A cama é enorme, apesar ter sido escolha minha, tem dias que é demasiado grande só para mim. Gostava que fosse mais pequena, especialmente em noites de tempestade e confusões mentais, para não me sentir tão só. Também não vejo filmes de terror pelo mesmo motivo. Não tenho prazer em andar a correr a meio da noite e ao escuro, quando aflita tenho de ir ao quarto de banho.
Entre regras, medos e nostalgias a doutrina básica é uma: estar feliz. A minha casa é uma réplica do meu estado de espírito e personalidade. É onde sou livre. Onde faço o que for, a que horas for e como for, desde que me faça feliz.
É uma delícia viver sozinha. Como se te todas as vezes que abro a porta de minha casa corresse descalça para o recreio. Ligo o holofote auscultador, carrego play na lista dos oldies, desaperto o sutiã e relaxo.
O mundo lá fora pode esperar.
Está na hora do recreio.
4 Comments
Olá Alice aka Michelle 🙂
Sabes, sigo à pouco tempo o teu blog e instagram, mas gosto, muito, de ler tudo o que post.
Emocionei me quando li sobre o teu desgosto de amor, Tetris. Identifiquei me com algumas coisas, o que me fez largar uma lagrimita. Li agora este teu novo texto, e mais uma vez me identifico. Sou da figueira da foz, mas estou a viver, sozinha em Braga (não tenho o oceano a separar me da minha família, mas tenho os mesmo medos de alguém que vive a milhares de km), e posso dizer-te que nunca tive a anseia de partilhar o meu espaço com alguém, mesmo antes de o ter, porque eu sempre disse “quando for viver sozinha quero mesmo estar sozinha, não quero filhos, não quero ninguém”. Até ao dia em que conheci o tal, o tal que me deu a volta, que me faz fazer planos que nunca imaginei fazer. Sabes o que é engraçado? Nós terminámos a nossa relação (ele deixou-me, arrependeu-se e eu, casmurra e teimosa, não voltei atrás), no momento em que eu aceitei vir trabalhar para Braga, cidade onde ele vive. Tantas tempestades passaram, que eu voltei a ele, ou melhor tentei, e vou tentando. É tudo tão complicado, que ao escrevi estes gatafunhos para ti apercebo-me de que se escreve-se mais, me sentiria mais liberta. Mas adiante, viver sozinha é tudo aquilo que tu dizes, mas o meu “tal”, que pernoita a maioria das vezes no meu sagrado espaço, é como se já fizesse parte, tivemos uma relação de 4 anos, que vai durando aos poucos e poucos depois de um término de 3 meses e tal, o que nos permitiu conhecermos nos um ao outro de uma maneira impressionante, e ter um a vontade que nunca consegui, e acho que nunca vou conseguir ter com outro alguém.
Pronto, olha, isto foi uma desabafo matinal aqui de Braga.
Não pares de escrever.
P.s.: menti, não vivo sozinha, vivo com a minha gatinha Pituxa.
Beijinhos Alice aka Michelle
Olá Michelle! Conheci-te digitalmente por intermédio da Vanessa, aquando da vossa viagem a Cuba. Sigo-a á bastante tempo 🙂
Hoje foi a primeira vez que visitei o teu blog, precisamente para ler este teu texto. Identifico-me bastante com ele. Tenho 29 anos e vivo sozinha. No meu seio familiar é encarado como uma espécie de desistência da vida lol Para os meus pais o facto de eu optar por ser uma quase trintona, sem filhos e a viver sozinha é muito out of the box! Mas eu compreendo, até para mim é uma surpresa. Até á 5 anos atrás a minha vida estava toda planeada a dois. Tinha um relacionamento longo, estável e perfeito. Fomos viver juntos e ao fim de 4 meses separámo-nos! Passei muito mal, quando percebi que o meu plano de vida tinha sido rasgado e jogado fora. Julguei que nunca mais ia conseguir estar bem e feliz. A coisa boa é que quando bates no fundo do poço, não tens outro remédio senão subir. Decidi nunca mais colocar a minha estabilidade e bem estar nas em mãos alheias. Hoje em dia vivo sozinha há dois meses e não podia estar mais feliz! A minha casa é o meu jardim privado (em parte, literalmente… tenho uma quantidade estúpida de plantas 🙂 ). Nada me deixa mais satisfeita do que entrar na MINHA casa ao final de um dia de trabalho e poder estar simplesmente na minha companhia.
Ah e também tenho uma paranóia gigante com sapatos dentro de casa. Todos os meus amigos têm lá umas pantufinhas, para quando me visitam 🙂
Parabéns pelo texto, continua a escrever. Eu voltarei mais vezes.
Beijinhos.
💪💪💪💪 love it😍😍
Lifewithalice… Que delícia…
Muito muito bom.
Ps. Danças que te fartas… Estava lá… A assistir ao teu último espetáculo ( vá tenho a certeza que era tu).
Beijão