Dizem-me, em passados, presentes e futuros que eu vivo num mundo remoto. Num mundo fantasioso, a galáxias de distância da realidade. Num mundo que não existe.
Também me dizem que sou uma romântica incorrigível, crente nos amores dos contos de fadas, na felicidade eterna e nos sonhos improváveis. Dizem e têm razão, eu vivo assim.

Dizem que a visão que tenho do mundo não é a errada, mas que também não é a real. Que é inocentemente sedenta. Porque sinto sinais de amor, consideração e respeito em gestos mendinhos. E que é por isso que compilo cicatrizes de dor, reciclo pensos usados e esterilizo agulhas de costura.
Ouço isto especialmente quando outros, que não estes, me magoam. Quando baixo a guarda, dispo a roupa e a máscara de ferro. Quando choro. Quando os outros, os que magoam, me ensinam que o ser humano tem tanto de incrível como de hediondo. Variando em quantidades, quebrando padrões e sem que eu me tivesse inscrito em formações pós-laborais. Sem que eu tivesse demonstrado a mínima curiosidade em lidar com a bipolaridade egoísta e alheia.
Dizem-me isto quando me desiludo, quando permito que me magoem mais do que gostaria. Dizem e revoltam-se, sacodem-me pelos ombros e dão-me borrachas para apagar as cores garridas com que pinto o meu mundo. Tentam substituir os meus lápis de cores vivas por cores pastel. Eu fico ali, de borracha na mão esquerda, com a palma da mão direita fechada em cores sem cor, de cabeça baixa e de lágrimas secas nas bochechas.
É esta a forma que têm de me proteger.
E eu quase acredito. E eu quase que torno as cores mais discretas. E eu quase me camuflo.
Fico ali, a permitir-me sentir o mau e esperar que a ferida pare de sangrar.
Sempre para. Sempre passa.
Quando a tempestade a preto e branco termina, volta a cor.
As cores.
As cores fantasiosamente garridas.
E eu lembro-me mim.

Quis a minha sina que tivesse nascido a querer a vida dos pés descalços. De os enterrar na relva molhada e na areia quente, sem nunca ter apanhado uma micose ou uma unha me ter encravado.
Sempre andei de boca suja, de azedas entre os dentes, de cabelo ao vento e de roupa que descondizia.
Cresci a ver de onde vinham as batatas, as maçãs, os figos, os morangos e as romãs.
Ensinaram-me a vida campestre. Sabia onde estava o Borda-d’água, o óleo para a corrente da bicicleta, a faca de amanhar peixe e o funil que matava as galinhas.
Cresci com amor à cor, fascinada pelo luar e amante, assumida, do sol. Talvez por isto, e enquanto escrevo este texto, o pescoço tenha sucumbido para o espectro de luz que trespassa a janela. Aqueço a parte direita do meu rosto e, encadeada pelo sol, aceito que vejo um mundo mais colorido. Não mais colorido pelas cores das telas, lápis de cor ou paletes. (Ou os tons que emitam as cores, como secretamente lhes chamo). Mas as cores do mundo, as cores mais bonitas que os meus olhos pousaram. Tão profundamente me marcaram que lembro todas.
A minha cor favorita é o azul, não o azul da palete de cores ou o azul básico. É o azul-escuro do mar do Golfo do México, que me enfeitiçou e arrastou para o fundo do mar. Também gosto do castanho dos malmequeres que cheirei em Fombio. Do bege da areia do mar, do verde-esmeralda dos olhos da miúda que estava no metro, do laranja do pôr-do-sol da Barra e do cor-de-rosa do céu fim de tarde, em Bali. O prata que me prende a respiração é o da lua cheia, que me encosta ao chão, aperta o cinto de segurança e me projeta para o espaço. O amarelo que me fez esquecer do mundo foi o dela, quando o sol lhe penetrou os cabelos loiros. O vermelho que me entristece é o da camisola que ele vestia em casa, a mesma com que agora eu durmo. O roxo dos lábios dele quando tremia de frio, o preto do alcatrão da rua da minha casa onde corríamos descalços, o branco das conchas de Varadero, o verde denso das florestas na Costa Rica, o bordeaux do passaporte. E o meu cinzento favorito é dos cabelos dos meus avós.

Talvez eles tenham razão.
Talvez eu veja o mundo como os loucos, e também eu esteja na iminência de uma loucura pigmentada.
Talvez.
Dizem-me, eu ouço e espero. Aguardo que eles estejam prontos para deixar entrar a cor, mesmo que não garrida como a minha. Aguardo que eles deixem de ser daltónicos, que deixem de ver o mundo só em tons que não chateiam muito. Aguardo porque vivo num mundo remoto. Num mundo fantasioso, a galáxias distantes da realidade. Num mundo que existe. Onde há românticas incorrigíveis, crentes nos amores dos contos de fadas, na felicidade eterna, nos sonhos improváveis e nos dias explosivos de cor.

 

fotografia por Daniel Ribau

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