Pontapeio uma pedra da calçada suja e fito o céu cinzento e anilado. Desacelero o passo quando calco a lista branca da passadeira e o meu olhar segue o táxi, veloz e amarelo, que me impede de ver o outro lado da rua. Atravesso o alcatrão da mesma forma como sempre faço. O Empire State Building no lado direito, o cinema das letras vermelhas no lado esquerdo e eu no meio deles. Nada diferente. Não há nada neste dia que desconfie expectativa ou ânsia de, que algo revolucionará, neste preciso momento, a minha vida.

Que enganada estava.

Que vida ensaiada julgo eu viver.

Assim que piso a nova calçada, do outro lado da rua onde esperava na passadeira e onde persegui o táxi com o olhar, sou extasiada. Completamente extasiada por um desígnio nítido, coerente e esperançoso. Como se ao pisar a calçada tivesse acionado um detonador, uma descarga criativa que me imobiliza e me torna um estorvo para quem, comigo, partilha o mesmo pedaço de cimento.

Começo a rir-me de felicidade, como se tivesse resolvido um enigma matemático que não ambicionei ter em mãos. Olho em redor, com medo que me achassem tola. Olho em redor, na esperança que alguém tivesse visto aquele raio de luz, que me abriu a cabeça com palavras esplendorosas. Em vão, tento voltar à marcha. E uma estória de amor eletrocuta-me os sentidos. Dois personagens surgem no interior da minha íris, tão nítidos quanto a projeção de uma película numa tela branca. As letras dos seus nomes dançam numa pista alfabeta que a minha mente fantasiosa emparelhou. Um começo, um durante e um final que me sussurra os ouvidos. Uma revolução emocional que me teletransporta para casa. Que me dá paz e esperança.

Quero vomitar esta indigestão que me enferma. Quero partilhar esta quimera. Quero ouvir-me dizer o que aconteceu e saber se falo a língua dos loucos!

Portugal já dorme.

Liguei ao meu daqui:

– Estou muito ocupado, estás bem? – Atendeu, mesmo que na pressa.

– Sim, sabes que dia é hoje?

– Vinte e dois de Agosto de dois mil e dezassete.

– Fixa este dia. Hoje é o dia que decido escrever um livro.

– Um livro! Não vou esquecer, prometo. Tenho de ir, quero saber tudo depois!

Não me soei doida. Não me soei perdida. Tive a certeza do que sentia. Estava absoluta do caminho a tomar.

Um livro vazio foi aberto no meu crânio, enquanto caminhava para uma aula de dança. Um turbilhão fervescente de peripécias e características que me correm pelas veias. E eu, sem uma caneta para lhes dar cor. O interior das coxas suam com o calor tórrido que me aquece a cabeça. Os pés voltam a acelerar de excitação. No pensamento, a única preocupação doida:

– Espero que a coreografia que me espera não me faça esquecer esta ideia!

E não esqueci, era impossível esquecer. Aquilo foi um sonho que nasceu, sem nunca antes ter sido ambicionado. Foi um sonho, que sonhou ser sonhado por uma sonhadora que dá sonhos ao sonho. E eu aceitei sonhá-lo. Sem o repensar, sem que me achasse capaz e ignorante do como o concretizar.

Pela vontade, persistência e consistência esse sonho ganhou forma.

Esse sonho tem hoje nome, Mel.

Sem que também nunca antes tenha sonhado chamar-se assim.

E tu, se vives de olhos postos nas estrelas, dás as sardas ao sol e ao vento os teus pensamentos, espera.
O teu vai chegar-te também.

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1 Comment

  1. É realmente um delícia ler os teus textos!!!