Desde cedo que a terra onde nasci surgiu nos meus trabalhos da escola. Soletrada e escrita incorretamente, mas descrita com nostalgia e curiosidade. Quis o destino que me mudasse para os EUA e, quando foi possível, rumei a Connecticut.
Sem expectativas, conduzi até à morada indicada, e incrédula contemplei o que me acolheria. Uma grande casa de madeira, embutida no meio da floresta. Tudo era verde, as ervas aromáticas, caseiras, davam sabor ao ar e os meus tios, enamorados e felizes, aguardavam o meu abraço.
Escolhi o quarto com o cadeirão baloiço para dormir, era o maior e mais arejado. Decorado com fotografias dos, outrora, 7 irmãos, afilhados e sobrinhos.
Aqui, o amanhecer é precoce e quando o primeiro raio de sol me beija as pálpebras, apresso-me a acordar. Visto a t-shirt XXL e com o cabelo mal apanhado, corro pelas escadas. O cheiro das panquecas e do café fresco invadem-me as narinas, mas aquela paisagem imobiliza-me momentaneamente. Estou no meio da floresta, dentro de um cubo envidraçado. Desço o último degrau, desacelero o passo e silenciosamente abro as portas do alpendre. Como se não quisesse afugentar aquela vista magnífica. Percorro as escadas em espiral, decoradas com rosas brancas, e piso a relva molhada. Em bicos dos pés espreguiço a soneira matinal, escuto o chilrear dos pássaros e o som das folhas, que se embalam com a brisa:
– Cuidado com as carraças! – Grita, sorridente, a tia do alpendre.
Respiro fundo, subo caminho e todos juntos tomámos o pequeno-almoço.
Visitei as duas casas que, num passado distante, acolheram a minha família. Um quarteto que não recordo de ter pertencido, mas que existiu naquelas casas. Ele e ela, que um dia pensaram que ali seríamos felizes, emocionaram-se quando lhes mostrei onde estava. A vida dá voltas e voltas, e a bebé que ali gatinhou estava, agora, do outro lado da rua, 24 anos depois, a reviver uma lembrança apagada pelo tempo. Fui engolida por um sentimento de paz, até agora, inexplicável. Como se as minhas raízes e eu finalmente se reencontrassem, na terra onde nasci.
O dia vai ainda meio e ocupo o tempo a fotografar, a contemplar os esquilos, que lutam nas árvores, a meditar e a escrever, enquanto baloiço na cama de rede. A tia debate-se com o menu do dia, folheando as revistas de culinária portuguesa, o tio ouve as notícias e desafia-me para uma partida de damas.
Quando o sol já não beija a copa das árvores, aprontamos a mesa no alpendre, abrimos as garrafas e afiamos os talheres. As conversas sobre as Histórias do mundo e dos meus namoricos recentes, não têm fim e por algum motivo confidencio-lhes tudo. E eles a mim. Sem pudores ou diferenças etárias.
Chegada a noite, ficámos só as duas. Ali, no meio de um manto azul iluminado por centenas de estrelas e pirilampos. Recordamos e rimos até doer a barriga.
O cansaço fez-se pesar. Arrumámos, entrámos em casa e falámos sobre a Alice, a Maria Alice. A tia desabafa, olhando para o chão, as saudades que sente e o quanto a morte dela foi dura e injusta. Afirma, que a vê não só em mim e na minha mãe, mas também nas flores que planta no jardim. Eu escuto-a e recordo a minha avó. Conviver com esta minha tia é como rever a minha avó em carne e osso. Se não tivesse partido aos 57 anos ela seria assim, nós as duas seríamos assim. A minha avó ter-me-ia visto mulher. Tantos conselhos me daria. Tanto que ficámos por viver:
– Vês isto aqui? Foi a tua avó! Nunca percebeu como fechar esta porta, e como era teimosa e bruta… – apontou a minha tia para a lasca no armário.
De seguida mostrou-me uma travessa branca:
– Era dela, sempre que a uso sei que a Mª Alice está comigo. – Sussurrou enquanto abraçava o pedaço de loiça.
Desfiz-me em lágrimas. É inconcebível a força desta mulher, falecida há 14 anos, e ainda presente na vida de todos os que me rodeiam. Tão viva em mim e tão responsável por ser quem sou. Uma mini Alice.
A tia abraçou-me, limpou-me as lágrimas com os polegares, beijou-me a testa e fomos dormir.
Deitada na cama imensa, contemplei os pirilampos que chocavam contra a janela. Chorei até adormecer, desejando um dia ser metade da mulher que a minha Alice foi. De madrugada, aquele raio de sol, maroto, voltou a acordar-me e o dia recomeçou.
Estar com os meus tios, na casa da floresta, é a minha fonte de rejuvenescimento. São incontáveis as garrafas de vinho, petiscos, histórias e gargalhadas que partilhamos. Só aqui me sinto em casa. E quando a vida corre menos bem e o coração aperta, conduzo-me para cá. O meu remédio santo és tu, Connecticut!
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