Quem fica? O que se diz? O que se faz? Quanto tempo até ficar mais fácil? Quantas vezes posso falar do vazio? Quantos dias dou à dor?
Passamos o tempo a preparar-nos para a morte de alguém e esquecemos de nos preparar a nossa. O que acontece quando morremos ainda em vida? Quando estamos vestidos, mas nus? Quando toda a roupa do mundo não nos aquece a alma?
Sou peixe fora d’água, a saltitar entre a vontade de morrer para a vida ou de a viver.
Tenho a mente doente.
Tenho medo.
Sou como uma mulher grávida que espera o fim do primeiro trimestre. Muitas manhãs acordo estremunhada, como à procura da mancha de sangue no lençol. Com a ansiedade que antecede o medo. Medo que a vida do agora, frágil e aprendiz, tenha abortado enquanto dormia, sem que me tenha dado conta.
É este o meu trauma.
Acordo de olhos fechados, querendo até não abrir pestana, aterrorizada que o meu mundo vire outra vez do avesso. Acordo como se estivesse a ser perseguida. E antes de desbloquear o telemóvel, rogo que tudo esteja igual a ontem. Não quero sangue, não quero morte. Porque me morre a vida a que me acostumei! Esta nova vida… Que eu não pedi para viver. Que eu não desejei como aprendizagem ou para ficar mais forte. (O que alguém que sofre há muito tempo diz a alguém que começou a sofrer). A sentir a dor do vazio, a sede imortal, a derradeira impotência e o eterno para sempre. O fim.
Estou contra mim, porque não há culpados. Estou contra mim porque não há nada a fazer.
Acelero o passo pela casa. Atormentada fito o espelho da sala, no reflexo uma mulher que chora. Pela janela do carro correm as árvores e as luzes da rua. Está escuro. Vou ao último sítio onde o vi, onde senti amor. Os médios iluminam os portões fechados do cemitério, por ali fico. Não é a primeira vez.
Não é a primeira vez que a saudade me deixa sem rumo.
Tenho saudade.
Não só dele mas do tanto que me preenchia a alma. Ele não só ouvia, mas lembrava. Ele era Verão, a minha infância e consciência. Era o melhor amigo disfarçado de pai. Ele distinguia o que era importante, ele sabia jogar, rir e discutir.
Tanta saudade de uma boa discussão contigo.
Tenho saudade da vida feliz, da leveza com que me levantava, do sono tranquilo e do amanhecer sorridente. Da inocência, que destemidamente me fazia conquistar mundos e não sentir perigos.
Tenho saudade, não é a primeira vez.
Limpo as lágrimas e compreendo que depois do funeral continua a haver o nada.
Há em mim pouca vida, mesmo que a vontade de viver seja maior que a minha altura. Perdi a minha alma quando o perdi para sempre. Com ele foi parte de mim e mesmo que entenda também que talvez a minha vida seja agora só isto, metade de uma laranja, continuo a viver o melhor o que sei:
– Olá! – Saúda a Mel baixinho.
Envergonhada baixo o vidro.
– Perdeste-te no caminho? Bebemos um vinho já ali na minha casa? – Pergunta-me ela.
Inspiro. Ela aparece sempre na hora certa, desarmando-me:
– Sim, mas tens copos para tanta gente? Sinto que tenho o carro cheio. – Aponto para os lugares desocupados.
Rimos.
Segue-se a vida.
4 Comments
“A sentir a dor do vazio, a sede imortal, a derradeira impotência e o eterno para sempre. O fim.
Estou contra mim, porque não há culpados. Estou contra mim porque não há nada a fazer.”
Este texto “leu” o que me vai na alma (como se isso fosse possível…). Perdi o meu pai há menos de um ano e o meu mundo ficou virado do avesso. Tornou-se um lugar estranho. A vida, como sempre a conheci, acabou. Parte de mim também morreu quando tive de me despedir dele pela última vez. Estou a tentar aprender a viver na metade que restou. Há dias maus, outros menos maus. A saudade, essa… É indescritível. Obrigada pelo desabafo partilhado neste texto bonito, ainda que triste. Colocou em palavras aquilo que sinto todos os dias, no silêncio da minha existência. Obrigada, de verdade. Um abraço.
Bebi cada palavra tua. Mas nada me sacia. “I was daddy’s girl.” Não busco curar a minha dor, ela vai estar sempre comigo. Eu tenho tantas saudades do meu pai. Da minha vida com o meu pai nela. Tudo perdeu o sentido. Após o funeral, viver não era algo que me apetecesse. Perdi a minha raiz. Tenho um botão mental. O botão “Stop”. A que eu recorro quando me começo a perder neste poço de dor.
Obrigado pela partilha.
Sábias palavras.
You did it again!
Fico embasbacada com o que escreves, coisas que vais buscar ao fundo da alma, coisas que eu tenho em mim e não sabia.
Fucking same, everyday.
A vida depois nunca mais é a mesma.
Eu adorei. A dor de perder alguém que nos é próximo, parte de nós vai junto e nós temos que reaprender a viver. ❤️✌🏻