A porta abriu.
Vejo a carteira esquecida na estante, os óculos de ler abertos sob o teclado do computador e o casaco, de sair à rua, desmaiado no bengaleiro. O candeeiro de lava vermelha está desligado, a mini prancha de surf que lhe dei está fora do sítio e o cheiro dele está em todas as partículas do ar que respiro.
Abrimos o armário e contemplamos a roupa, exposta em cabides de plástico preto. Lembrei do que comprava, ao preço da chuva, nas nossas viagens. Camisas e camisetas que ele nunca vestiu, ou tencionou vestir. Apalpei o casaco verde-garrafa que ele usou e que ainda cheira a ele. Vesti-o e tomei-o como meu. Mesmo que não sirva e que fique exageradamente grande, é meu. Sinto-o em mim com ele vestido. Trouxe também o peluche equipado de azul e branco. Que ele me deu no último Natal e que esqueci no sofá da sala. Talvez tenha pensado que o fiz propositadamente. Talvez tenha ficado triste e achado pateta oferecer um peluche à filha mais nova, de vinte-oito anos de idade:
– Toma lá, encontrei no quiosque quando comprava “A Bola”. Ficava mais bonito de vermelho e branco, mas pronto! – Disse estendendo-me o boneco.
Ele era benfiquista ferrenho e eu portista. E aquilo foi um gesto de amor.
Sai do apartamento com o casaco gigante vestido e com o urso pela mão. Revoltada, triste e determinada. Naquele momento, decidi parar de escrever. Ia colocar a Alice e o livro, quase terminado, em coma induzido até eu voltar à vida. Não o disse a ninguém. Ia fechar-me para o mundo, assim que aterrasse no outro lado do Atlântico. Resoluta estava até apalpar o bolso interior, do casaco do meu pai, e encontrar uma caneta. Até descobrir, também, o texto que ele me escreveu quando, há dois anos, procurava a coragem que me faltava. As palavras dele iluminaram-me temporariamente, como se tivesse ateado um fósforo no meio da escuridão. Segurei a caneta, o urso e percebi que encarcerar o dom que o meu pai me deu era enterrá-lo outra vez.
E talvez seja isto que vou fazer, desafiá-lo e ameaçar desistir a meio caminho para que ele me dê clareza. Para que ele, finalmente, me apareça em sonhos e resmungue comigo. Me espicace, me estimule e me ralhe muito. E eu ficarei em silêncio, a olhá-lo com os meus olhos gigantes e a ouvi-lo com um ar vitorioso.
Não procuro conforto, respostas nem consolos. Não há livros, receitas ou frases mágicas que ensinem a viver com “isto”. Cada um deve lidar com “isto” à sua maneira e tempo. Digo “isto” porque não tenho outra palavra para “isto”. Vou escrever sobre “isto” até me apetecer, porque há verdade e cor nas minhas palavras, nas palavras que dou ao mundo.
Há momentos no meu dia que esqueço que “isto” aconteceu e divirto-me à gargalhada. São risadas curtas, dormentes e que depressa me inundam de culpa. Como se o meu riso fosse inoportuno. Como se não cumprisse o meu dever, enquanto membro de uma restante família que também sofre:
– Fica atenta que ele vai aparecer-te nos olhos de alguém. – Disse-me a minha madrinha, enquanto me erguia o queixo. – Levanta a cabeça e está atenta a quem por ti passa.
Desde então que o procuro, e me procuro.
Hoje sou a mulher que veste um grande casaco verde e se acompanha por um peluche. A mulher que trouxe um urso ao colo no avião, que o apertou quando a turbulência a assustou, que o encaixa no banco do passageiro e o passeia na mala de mão. Que dorme com ele e que o esmaga contra o peito, quando lembra que o pai partiu. Esta mulher, que se sentou hoje num café com um urso a espreitar pelos fechos metálicos, sem vergonha dos olhos alheios:
– Um chá para si e alguma coisa para o seu amigo? – Perguntou-me o empregado.
Quase sorri.
Sou consciente que carrego a dor, a dúvida e a revolta na alma.
Sou consciente também que um dia ele e eu voltaremos a mim. Que tornarei a sentir o calor do sol. Que o sorriso me rasgará os lábios. E que o coração, que me fugiu, reencontrará o caminho para casa.
Até lá sou “isto”.
Um tremor de emoções e apatia. Uma carapaça sem alma, um sorriso desfeito e fugaz.
Este é o dez.
Porque o dez é o meu número favorito.
Porque o dez está gravado no equipamento do urso sem nome.
Porque dez é o número de dias que não vejo o meu pai.
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Abracinho do tamanho do mundo.