I. Empatia
Imagina-te solteira, emocionalmente disponível e a querer conhecer nova gente sem ajudas do acaso. Imagina-te a caminho de um encontro às cegas. Diferente da comum definição.
(Este meu desafio imaginário implica que se pense num encontro literalmente às cegas. No escuro e orquestrado por ninguém em comum).
Imagina-te a entrar num edifício, a ser vendada pela concierge e, gentilmente, conduzida por dois dedos que te pressionam o braço esquerdo. Desces uma escadaria, acompanhada por quem te vendou. Permites que a mão direita deslize pelo corrimão, é suave e pouco frio. A venda está bem apertada, sem que te magoe e sem que consigas espreitar pela fenda que se abre perto das narinas. Não vês, mas ouves. Ouves conversa sussurrada, tilintares desencontrados de talheres, copos que pousam em câmara lenta, suaves arrastar de cadeiras e regozijos.
A sala é escura como breu, possivelmente estás numa cave. Sabe-lo porque não estás aqui por obra do acaso. No entanto, pouco mais sabes. Sentam-te, retiram-te a venda e ali ficas. Já não sozinha, mas ainda no escuro. Vês diferentes sombras pretas e os teus olhos tentam, esforçadamente e em vão, pintar-te qualquer imagem que não te alimente o medo e te faça arrepender de aqui estares.
Alguém é sentado à tua frente.
Ouves a cadeira arrastar, sentes a ponta de um sapato raspar-te a canela e deleitas-te com um riso nervoso que vibra no teu ar. Um riso sem género. Dizes olá e não reconheces a tua voz, ouves olá e não decifras se é voz de homem ou mulher. É só uma voz. Esta sala escura elimina o género nas vozes, é uma espécie de speed dating cego e agénero. Afinal, estás aqui para conhecer pessoas, almas. Quem sabe para te interessares por alguém, homem ou mulher, que te excite o cérebro com as palavras. Que te ensine alguma coisa que ainda não sabias, até aqui te sentares. Sairás desta sala com alguém ou sozinha. Tu escolhes. Sem que nada físico influencie a tua escolha, apenas tudo o que não vês. A conversa, a dinâmica, a energia, a gargalhada, o em comum, o discordante, os sonhos, o galanteio, as dores e a dança estanque. Sempre no escuro.
Sempre sem saber se o humano, que à tua frente foi sentado, é homem ou mulher. Alto, loira, musculada, roliço, desportista ou político. (Ah, há uma regra nesta conversa. Não se fala do que se faz ou quanto se ganha. Isso não interessa para conhecer pessoas. Afinal, nascemos sem profissão)
Importa só se te ris, se te sentes confortável e contente. Se sentes prazer na companhia, do que não se vê, do que está e vem de dentro. No final, sairão humanos desta sala. As vozes voltarão ao corpo, os humanos terão género.
Imaginaste?
É assim que eu amo.
II. O armário
Aproveito o curso de um rio português que pretende abalroar preconceitos antigos e apelar à desconstrução do nosso eu homofóbico, entre tantos outros eus malignos, para me esquivar do armário. Do meu armário.
Há trinta e nove meses, conto-os com precisão porque os carrego com vergonha, que desenhei e construí um casulo. Um armário, tipo bunker onde se escondem os presidentes em caso de ataque nuclear. Catita, decorado com o mais perfeito bom gosto e arte feng shui. Quentinho no Inverno e fresco no Verão. Adornado com almofadas felpudas, fotografias antigas e plantas de plástico, porque tudo o que é vivo não sobrevive nele muito tempo. Nem eu. Atrevo-me.
Fabriquei o mais filha da mãe de um armário. Com gavetinhas e gavetões, cruzetas e pinchos, velas e espelhos. Com espaço de sobra para mim, mas não para a minha liberdade, e com o mais infalível sistema de segurança. Fundamental para o bem-estar dos sentimentos cobardes.
Construí este armário em Portugal, o suposto espaço seguro, feliz e de amor.
Quase ninguém sabe dele. Quem por fora o vê, diz que nem parece um armário. Lá mora, em Portugal, há quase dois pares de anos. Lá vivo eu também, sempre que estou em Portugal.
Na verdade, o armário é crucial para o meu período de pupa. Não escreveria isto, se nele não tivesse vivido, maturado e metamorfoseado. Porém, prolonguei o contrato de arrendamento, redigido e assinado por mim. Porque viver no armário é confortável. É jogar às escondidas sozinha, é dar espaço para me sentir insuficiente e frágil. É o buraco negro da felicidade.
Viver no armário é viver uma vida de agente duplo onde o mau da fita, aquele que luta contra a minha felicidade, sou eu. O armário é aquele vilão que tem dias que se gosta, principalmente quando o medo me destrói a alma e me congela a razão, lá vem ele… com uma mantinha felpudinha para me aconchegar, para fazer as portas deslizar e sussurrar “o mundo é cruel, aqui estás segura”. Este medo é recente, fruto de ter perdido as palas quando emigrei.
Emigrar apresentou-me a saudade, a luta e a vida de trapezista sem rede de segurança. Fez-me crescer e renascer, não mais volto a ser quem era. Viver em Nova Iorque fez-me valente, desprendida, livre de julgamentos e preconceitos. Abriu-me os olhos e a mente. Esbofeteou-me com a diversidade, multiculturalidade e expressividade humana. Presenteou-me com os mais diferentes seres humanos, com as mentes criativas e com as mais díspares formas de viver esta vida. Baixou-me o ego. E quando saí da casca, pisei o meu desconforto e ordenei que Nova Iorque se calasse! Que parasse de encher os meus ouvidos com provocações abomináveis! Mas ninguém silencia as grandes cidades, nem mesmo eu dentro da minha cabeça. Discutimos. Chamou-me ela de egocêntrica, como se alguém que nela vivesse e ela mesma, Nova Iorque, quisesse saber como me visto, com quem a minha língua dança ou com quem fantasio à noite. NINGUÉM QUER SABER!
Foi à distância de um oceano, foi a não ouvir Portugal perto, que dei conta do pomposo eu homofóbico que vive em mim. Um pequeno homofóbico, e nojentinho de merda, eu. Que come e bebe de graça, que não paga renda ou luz, que eu acaricio e ignoro quando ele diz barbaridades. Não fui eu quem o pariu, mas sou eu quem o sustenta. Só em Portugal.
Será esta a grande ironia? Um eu homofóbico que vive no espectro? Serão os homofóbicos eus queer acagaçados pela liberdade?
Pontapeio as portas do armário e vejo luz. Desaparecem as mãos que me estrangulam. Acaba o sufoco.
Aqui desconstruo o meu eu homofóbico. Um minuto de silêncio.
Aqui jaz o meu armário. Dois minutos de silêncio.
Mudei de casa. Voei para o espectro.
III. No espectro sexual
O espectro sexual é, a meu ver, um arco-íris de possibilidades felizes e livres de julgamento, que permite a variação sexual desde o exclusivamente heterossexual até o exclusivamente homossexual. É uma nuvem colorida, onde o preto e o branco existem e/ou coexistem. Lá flutuam quem gosta só do sexo oposto, quem gosta só do mesmo sexo, quem gosta dos dois, os curiosos tímidos e os resolvidos, os que gostam de toda a vida humana, os sapiosexuais, os bissexuais, os pansexuais, os aliados, todos os que não menciono e todos os que não querem pertencer a uma caixinha com rótulos e definições. Todos estão no espectro. Viajam pelo arco-íris. Vivem no pináculo da liberdade. Pousam onde lhes apetece e deixam que a felicidade lhes desvende o caminho. São os corajosos, os que combatem o preconceito alheio com a sua verdade.
Na verdade, foi só há trinta anos que a organização mundial de saúde ensinou ao mundo que a homossexualidade não é doença. Foi, também, só em 2018 que a transexualidade deixou de constar na lista de doenças. Acredito que, a passo de um caracol lentíssimo, já se tenham desmistificado outras teorias de quem não consegue ver a vida sem binóculos… de quem não consegue vestir a pele do outro… de quem não compreende que existem formas de viver diferentes daquelas que interpretam da bíblia. De que sermos diferentes é a coisa mais natural do nosso mundo. Desde o formato dos olhos, ao paladar, à tez, aos gostos, ao talento… somos todos diferentes e todos humanos. Porque é as nossas escolhas íntimas, sexuais, haveriam de ser iguais? Porque é que quem não é “igual” é automaticamente diferente? Quem define o que é ser diferente? Ser diferente é não casar com um homem, não ter filhos, não cozer bolos e não podar rosas? Evolui a medicina e a ciência…e a mentalidade?!
Bem sei que os ventos amainaram e não se vive nas jaulas homofóbicas de há trinta anos, porque a luta pelo amor ganhou voz. As minorias, chamadas de diferentes e doentes, formaram comunidades e por todo o mundo acolheram os desiguais, quebraram as regras e desmistificaram falsas verdades. E mesmo que, esperançosamente, acredite num futuro onde as comunidades e movimentos que dão voz à injustiça sejam só boas memórias (porque se viverá num mundo de igualdade), sou imensamente grata pela comunidade LGBTQ+. Pelo espaço de conforto, aceitação, apoio, ensino, luta, coragem, esperança e resiliência que conquistou no mundo. E que eu sou parte.
Viver no espectro não é uma escolha, um ato de rebeldia, uma fase, um bilhete dourado para o inferno, uma declaração ateísta ou um querer ser diferente. É querer viver em amor. É SÓ AMOR. Terminaria aqui, mas mais tem que ser escrito, dito e visto.
Tu não tens um problema.
Tu não és um ser humano defeituoso, sem conserto. Tão pouco promíscuo.
A orientação sexual não define as tuas qualidades, defeitos, inteligência e talento.
Tu és válido. Assim como os teus sonhos e desejos de família. O teu filho chamará pai aos dois ou mãe às duas. Quem veste as calças na relação? Ninguém! Os dois, as duas, isso interessa?
Vive, ama e sê. Com tudo a que tens direito, com tudo o que mereces.
A tua verdade não desiludirá ou entristecerá quem te ama. E se assim o for, o problema não mora em ti.
Não importa o tempo que demores. Se te descobres na adolescência ou te redescobres em adulto, a vida é toda tua.
Deves a ti, e a mais ninguém, uma vida de cor e esplendor, de verdade e de amor.
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