Esta podia ser uma estória de como descobri que eram os meus pais, quem esgueiravam uns trocos por debaixo da minha almofada. Quando me caíam os dentes. Ou quando tentei arrancar um dente sozinha, atando uma ponta de um fio na maçaneta da porta (pelo lado dentro). Sendo que levei uma maçanetada no nariz. Mas não. Esta é uma estória sobre o dia em que me tornei, acidentalmente, numa maléfica fada dos dentes.
Era a hora dourada, que de Inverno se entende por aquele par de horas depois do lanche e antes do jantar. Depois dos TPC’s e antes do Telejornal. A mais nova e eu estávamos aborrecidas na sala de estar, enquanto a nossa mãe colhia os morangos maduros no Farmville.
Enquanto aquecia a traseira das pernas à lareira, a caçula olhou-me com um ar desafiante. Verdade seja dita, irmãs que são irmãs andam à pancada em algum momento da vida. Disputas físicas com a minha irmã mais velha eram rotina semanal, mas com a mais nova nem por isso. Por esse motivo, aquele olhar intrigou-me:
– Muda de canal, por amor de Deus. – Pedi-lhe.
– Deves pensar que mandas. – Resmunga-me a fedelha.
– Já o carapau tem catarro…. Queres levar com um cepo na tola? – Ameacei-a apontando para o cesto de lenha perto da lareira.
– Não eras capaz.
– Não?!
– Não. – Rematou com um sorriso sarcástico.
A miúda tinha catorze anos, eu vinte um. Desafio aceite!
Peguei num pequeno e redondo pedaço de madeira, fechei o olho esquerdo para acertar a pontaria e atirei. Levemente, inocentemente e divertidamente. Em minha defesa, não tinha como objetivo acertar-lhe e por isso apontei para o sofá. Para que lhe passasse uma tangente e, somente, a assustasse. No entanto, o tiro saiu pela culatra. O pedaço de madeira bateu, efetivamente, no sofá mas fez ricochete para a cara da minha irmã. Para a boca da minha irmã. Para o dente da frente da minha irmã.
Ri-me como uma perdida, como se festejasse um ato vitorioso. Até que ela destapa os lábios:
– Partiste-me o dente da frente! – Gritou com a boca aberta e a chorar.
Assim que vislumbrei a falha gigante, o sangue a escorrer pelo queixo e um pedaço branco desmaiado na carpete verde, parei de rir. Ajoelhei-me perto dela:
– Chora baixo, por favor. Por favor! Foi sem querer! Desculpa! – Implorei-lhe aflita.
– MOMMY! – Chamou entre a baba e o ranho.
A mommy veio e quase apanhei uma carga de pancada. A minha mãe queria rir, queria muito rir. Sei porque a conheço bem. Mas a filha mais nova estava desdentada. Impossível disfarçar aquela lacuna dentária. Uma risada agora seria dar-me poder e era inconveniente.
No dia seguinte, o elemento mais novo da família foi para o secundário, sem um dente da frente e eu para a universidade, com um tremendo peso na consciência. Já de noite, cruzei-me com a menina na sala de estar. Ela ignorou a minha presença como quem evita olhar para uma perna esfolada:
– Estás bem?
– Já tenho dente. O dentista disse que nunca mais posso trincar uma maçã com os dentes da frente. Obrigada.
– Pelo menos nunca serás envenenada! – Soltei uma piada estúpida, coreografa com a extensão do polegar e um piscar de olho.
Ela não riu e desviou a, pouca, atenção que me deu:
– Tens dores?
– Claro. Acertaste-me na gengiva e sangrei. Achas que não dói?
Remeti-me ao silêncio.
Nada podia fazer. Voluntariei-me para atirar cepos de lenha contra todos os que gozassem com ela. E ela também não riu. Demorou duas semanas até me dar uma oportunidade de remissão. Abracei-a e pedi desculpa. Era suposto defender a minha irmã mais nova contra o mundo e não andar a partir-lhe os dentes da frente. Mas… acidentes acontecem. Este foi um deles.
Hoje rimos sobre o assunto. E ela aprendeu a não espicaçar a irmã do meio, que é tolinha o suficiente para aceitar qualquer provocação.
Ela é a minha irmã mais nova, é a minha missão superar tudo o que ela me apresenta.
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