Saraiva lá fora.
Troveja mais do que saraiva.
Tomava banho quando ficámos sem eletricidade. Corri a porta de vidro baço do chuveiro, caminhei até às portadas de madeira e corri o ferrolho. Nua e descalça voltei para baixo da água quente do chuveiro e ali fiquei. A reparar na paisagem, a ver a saraiva cair e os relâmpagos a cicatrizar o céu de Fombio.
Estou em Itália há quatro dias e enquanto as bolas de sabão me escorrem pela pele e os trovões rompem pela casa de banho azul, revivo a minha aventura em terras italianas.
Aterrei em Bergamo depois de várias longas horas de espera, atrasos e voos de regresso cancelados. O Cláudio, o amigo que conheci nas nuvens e numa outra viagem de avião, aguardava a minha chegada com uma fatia de pizza de batatas fritas. (Aparentemente, pizza com batatas fritas é iguaria e tradição no norte de Itália, pizza com ananás é atentando aos valores morais de quem ali come pizza a vida toda. Seja em que parte de Itália, ou do mundo, for).
Abraçámo-nos, rimos, comemos e no caminho para Fombio parámos no santuário da virgem de Caravaggio. Majestoso, imenso e um poço de paz.
Apercebi-me que era a primeira vez que entrava numa igreja, de livre e espontânea vontade, em largos anos. Benzi a testa com água benta e ali ficámos com o pescoço hirto, de olhos no tecto pintado e com as pontas dos dedos nas paredes históricas:
– Tenho uma surpresa para ti. – Disse-me o Cláudio enquanto estacionava.
– Para que serve esse relógio de papel que colocaste no tablier do carro?
– Só aqui podemos estar duas horas. Esta é a forma de mostrar aos polícias a que horas estacionei. Mas não é esta a surpresa.
Caminhámos por ruas estreitas e coloridas. Rosa, laranja e amarelo creme. O Cláudio é um poço de paciência e agrado, fotografou-me em tudo o que lhe pedi e sempre que dobrámos uma esquina, sorri que nem miúda. Ele levou-me a Crema, cidade palco do filme “Call me by your name”. Um dos meus romances cinematográficos prediletos, daqueles que revi dezenas de vezes. Explorei os pilares, igrejas e bicicletas que pintam o filme. Entrelacei o braço esquerdo no do Cláudio, encaixei os auriculares nos nossos ouvidos e com a banda sonora do filme voltámos ao carro. Ele disse que íamos para casa, mas fez questão de fazer um desvio até Moscazzano, onde a casa que foi palco ao filme, atrás referido, foi filmado.
Ai, como gostava de ter sido um dos vizinhos da frente daquela mansão italiana, plantada no meio de campos verdes.
Conheci os pais do Cláudio e a Daisy, a cadela que nunca me passou grande confiança. Jantámos em família, todos os dias, como se fosse eu uma estudante portuguesa de Erasmus. Para sobremesa, fruta das árvores do quintal. Para beber uma cerveja de nome Regina.
Pensava eu que encontraria a almofada logo depois de jantar, mas o Cláudio sabia o quanto eu amo dançar e por isso levou-me ao Freeway. Chovia bolas de gelo, os raios iluminavam o céu carregado de azul e nós suávamos pela pista de dança. Os italianos são cavalheiros, e bem digamos que mesmo que não o fossem, todas as palavras proferidas em italiano soam a prosas de amor.
Na manhã seguinte rumámos ao centro de Milão. Visitámos o Duomo, onde pombos experientes e pouco medrosos bicaram milho da palma da minha mão. A galeria Vittorio Emanuele, onde todas as lojas cujas marcas nunca me apaixonarei estão e onde três vezes rodopiei, só num pé, sobre os testículos de um boi desenhado no chão. O Cláudio disse que era tradição e que dava boa sorte, eu acreditei até porque o piso estava visivelmente abatido e amaçado nas partes íntimas do animal. (A ver no que isto dá). Desbravámos ainda o Castelo Sforzesco e a Piazza Gae Aulenti.
Chegados a casa, lavei Milão do corpo e depois de beber de um fim de tarde húmido e esplendoroso, voltámos às pistas de dança.
Depois de poucas horas dormidas, embarcámos no comboio para Florença.
Quem vai a Florença e não se revê em algum filme ou série do antigamente, é porque tem trabalho de casa para fazer. As ruas estreitas de comércio, do ouro, da elegância e riqueza. As máscaras, o soar dos sinos, os corpos cobertos nas saídas das catedrais, as ruas de pedra. O som do rio que corre, dos pincéis a rasarem as telas brancas, dos violinos e patas dos cavalos. A beleza das estátuas centenárias que dizem morte, poder, promiscuidade, dor, o medo do Inferno e a sorte do paraíso. O cheiro a vinho, a pasta fresca, a comércio caseiro e a bolacha dos gelados. As catedrais e igrejas imensas, tão megalómanas que fazem doer o pescoço. Em tudo há história, há séculos de história.
Também aqui tentei a minha sorte e esfreguei o focinho de um javali, depois de lhe colocar uma moeda na língua e esperar que ela caísse no meio da grelha metálica. (A ver no que isto dá).
Ao fim do dia, naquela hora de surpreender o por-do-sol, subimos a Piazzale Michelangelo. Sentámo-nos na escadaria com uma cerveja gelada, no meio de uma multidão faladora e a escutar uma mulher que cantava sozinha e em italiano. A vista, o calor, o céu pintado por uma Natureza feliz. Que momento, tantas imagens recolhi para o meu álbum mental.
Voltámos ao comboio. E talvez pela nossa velhice, demos descanso ao corpo.
Os dias que se seguiram foram de descoberta, de praia, de agua translúcida, de sol, gelados, pasta fresca e vinho tinto. Conheci os amigos do Cláudio, que me fizeram sentir como se os tivesse conhecido noutras vidas.
Bebemos cervejas em canecas muito maiores que a palma da minha mão, dei de comer a cisnes, patos e passarinhos. Comprei quatro bikinis, dois da mesma cor, recordações e postais.
Num dos finais de tarde, daqueles de ar quente e céu cor de algodão-doce, demos com um grande campo de girassóis. Conduzíamos para casa, a cantar em plenos pulmões, de janelas abertas e eu com a mão direita a surfar ondas pelo ar. Olhámos um para o outro, sorrimos e estacionámos. Não havia pressa para voltar a casa, a fome era pouca mas a vontade de correr por entre as flores era apetitosa. Fizémo-lo. Arranhámo-nos, sujámo-nos e quando o sol se pôs voltámos ao carro e regressámos a casa. Com os pés sujos de terra.
Os dias voaram e quando o ouvido a ponta da língua se aventuravam em italiano, chegara a hora de fechar os fechos da mala de viagem.
Ao fundo das escadas, a mãe do Cláudio despediu-se com um pesaroso abraço e me falou em italiano. Ela falou do coração, não importada com o facto de eu não perceber o que ela me dizia, ou a com a velocidade com que o fazia. E eu respondi-lhe em português, disse-lhe que ela me lembrou a minha mãe. Ela não me entendeu, mas também falei do coração. Despenteei o pelo da Daisy, que me olhou com gana de morder, e disse adeus a Fombio. Houve ainda tempo para visitar Desenzano del Garda e Malpensa.
Com a boca suja de pistachio, disse até já ao Cláudio.
Disse Ciao a Italia.
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