Escrever sobre a saudade é como me submeter a uma cirurgia cardíaca. É evasivo.

O meu coração está dentro de um globo de neve, na estante mais alta do meu quarto. Habitualmente, o sol ilumina esta esfera de vidro, mas nos dias em que a abano a neve cai e eu perco-me. Fica frio, escuro e irrespirável. Apercebo-me da minha solidão e desço, em espiral, até ao chão gelado. Não tanto quanto eu. Choro sem som, sem ar e sem fim. Choro, porque me apercebo do que me esqueci.

Fecho as cortinas e sento-me no sofá, a vizinha desce as escadas a correr e o som dos seus passos lembra-me a minha mãe. Quando às terças ela madrugava para a, religiosa, aula de spinning. Mas esqueci a cor das sapatilhas dela, aquelas que só usava para pedalar.

A vizinha corre porque o apito de um carro ecoou pela estrada. A buzina lembrou-me o meu pai, quando ele vinha desafiar-me para uma partida de ténis. Desejava tanto que fosse ele quem ali buzinava. Mesmo que já não recorde o perfume que lhe entranhava a t-shirt vermelha.

O aroma a comida caseira paira no ar. Ai Manuel… meu rico avô! O cheiro da tua comida é tão melhor, mesmo que já tenha esquecido a cor da tua luva térmica favorita.

Saí de casa. Andei sem rumo, tentando contrariar o esquecimento que me corrói sem permissão.

Ouço um telefone a tocar e lembro do meu de casa. Branco amarelado, pendurado na parede da cozinha. Esqueci-lhe o som. O dele, o da campainha e o bater da porta da frente.

Vejo dois cães ao portão de uma casa e não me recordo dos brinquedos do Pets e do Lupi. Na janela dessa casa está um gato. A minha Daisy já não se recorda de mim, ou talvez sim, e só me ignore por orgulho. Porque é gata e mestre em disfarçar sentimentos.

Olho para o céu nublado:

– Menina, tu acacha-te!

A minha avó ralharia comigo agora… E mais chateada ficaria se me visse assim. Tenho a certeza que me limparia estas lágrimas e me aconchegaria no seu regaço. Mesmo que eu já não lembre do toque da minha querida Carmélia.

Caramba… Estou a esquecer pedaços da minha história.

Já não sei de cór o número do meu cartão de cidadão, os três últimos dígitos do meu código postal ou o número de telemóvel das minhas irmãs.

Não lembro mais do sabor do cappuccino da Mel, da cor do sofá da Van, da marca de telemóvel da Sof, do riso da Elsa, das covinhas da Tiny, dos arrotos do Gus, da altura da Marlene ou das coreografias da Piu. Esqueci o quão verde são os olhos da Anna, os filmes que assisti com a madrinha, a marca de vinho que bebia com os gafanhões, o timbre da Sara quando gritava “lait”, a forma dos óculos da Marta e da empresa onde o Rob trabalha. E todas as outras coisas que já tenha esquecido, sem lembrar que esqueci.

Corro pela estrada, antes que a angústia me estrangule:

– Hey Mitch! – Alguém grita pela janela de um carro em movimento.

Não reagi, porque Mitch só a Cunha me chamava.

Merda! É este o preço que tenho de pagar? O preço da coragem é o esquecimento? Esquecer detalhes que um dia dei por garantidos.

Eu sei que há novas memórias, há um novo mundo, oportunidades e pessoas. Mas nada substitui o velho, ou tudo o que antes vivi.

Respiro fundo, atropelo o meu coração e ouço a razão. Ainda há muito por fazer aqui. Talvez seja isto que acontece, o corpo esquece o que há muito não sente. Esquece para não ter saudade.

Bato a porta de casa, encho a banheira, desligo o telemóvel e ouço Joshua. A Alice pega no globo e arruma-o na estante. A neve assenta no chão envidraçado e o sol volta a brilhar.

Levanto a cabeça e trato de ser feliz.

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