Percorria o corredor, imensamente branco e espaçoso, do aeroporto de Milano Malpensa, com a mala vermelha, e de cabine, na mão esquerda e o telemóvel na direita.
Procurava o balcão da TAP e partilhava aquela caminhada, arrastada, com outros poucos humanos. Ia eu na minha serenidade quando avisto um homem, duplamente mais alto e distraído que eu, parado na frente do painel das chegadas e partidas. Segurava o telemóvel com a mão esquerda enquanto a direita esvoaçava palavras pelo ar. Inquieto, caminhou na minha direção. Exatamente na minha direção, percorrendo a mesma linha imaginária que eu, mas no sentido oposto. Não o vi prestar-me atenção ou a dar conta da minha existência.
Teimosa como sou, deixei-me estar. Continuei caminho, ele não parecia sofrer de problemas visuais. Ele desviar-se-ia. Ele tinha que se desviar! Pois bem, não aconteceu. Ele na minha direção, eu na dele. Colidimos. Estatelámo-nos um contra o outro. O distraído enfiou o cotovelo esquerdo, dobrado por segurar o telemóvel ao ouvido, no meu lábio superior. A vista escureceu, o corpo estagnou e levei os dedos à boca procurando vestígios de sangue ou de falta de dentes. Ele pediu desculpa, mil desculpas em francês. Eu gritei-lhe. Virei costas, disfarcei a dor e segui caminho.
Fula da vida.
Era totalmente, inquestionavelmente, humanamente impossível ele não me ter visto.
“Ele vinha na minha direção! Como não me viu? Eliminou-me do cenário? Ficou cego? Porque não se desviou quando foi ele que iniciou marcha? Porque não me cedeu passagem?
Ele deve ser um péssimo condutor! Ele é um péssimo peão!
Pelo menos ainda tenho os dois dentes da frente.“
Comecei a rir freneticamente, na fila de espera do check in. Quem assistiu àquela colisão pedestre deve também ter rido bastante. Ri ainda mais, quando me apercebi que tinha sido a primeira vez, em toda a minha vida, que levei uma cotovelada na boca. Ou que alguém, excluindo a minha mãe, me bateu. Desejei que aquele Homem tivesse sido multado, pela polícia que controla os comportamentos dos peões. No entanto, não há uma bíblia de regras para quem a pé anda. Perante esta lacuna e tentando prevenir outros incidentes dolorosos, tomei a liberdade e criei um regulamento para quem bate perna:
– Andantes à chuva: atentem aos guarda-chuvas. Mesmo que transparentes e bonitinhos, as extremidades aguçadas e metálicas magoam e molham. Fechem o guarda-chuva aquando cobertos e levantem o mesmo quando passam por alguém, por favor.
– Andantes que falam com as mãos: é sensual parecer-se italiano a toda a hora. Esbarrar ombros e roçar mãos alheias é bonito, quando consentido. No entanto, na calçada e em andamento respeitem o espaço dos outros, por favor. Final das contas, o ar é de todos.
– Andante apressado: ok, estás atrasado. Não tens tempo nem para chamar um Uber. Saíste de casa atrasado porque a preguiça venceu-te na cama. Não te mandes contra os outros ou perturbes os outros com as tuas corridas em contramão, por favor.
– Andante extra tempo: ok, estás folgado e matas tempo. Mais um motivo para respeitares as leis das escadas rolantes e estáticas. Lado direito para ti que tens tempo, lado esquerdo para o andante apressado. Não faças os outros esperar só porque te enganaste nas horas. Se fizeres favor.
– Andante imortal: aqueles que se mandam para as passadeiras sem olhar. Quem tem prioridade somos nós, peões. Todavia, o estrago será sempre maior para quem atravessa a passadeira à bruta, do que para quem brutalmente não parou o carro. Cautela nas passadeiras, faz-te esse favor.
– Andante sacola: malas de mão, sacos da Versace e do Pingo doce. Controlem os empurrões ensacados e os balanços exagerados, por amor de Deus!
– Andante carente, atenta à distância de segurança entre peões. Não é confortável pisares os calcanhares, descalçares alguém ou respirares o pescoço de quem vai à tua frente, ou lado.
Achava que o meu manual estava quase concluído:
– Miss! Miss! Miss! – Grita um bombeiro com a palma da mão quase a roçar-me a ponta do nariz. Enrubesci com vergonha. O bombeiro alertava-me para o camião que saía, em marcha atrás, de uma garagem embutida num prédio. A poucos metros de mim. Honestamente, não vi o camião ou o bombeiro. Estava mergulhada no visor do meu telemóvel. Pedi-lhe desculpa e cessei marcha. Ele abanou a cabeça, repreendendo a minha falta de atenção. Fiz-me um favor e guardei o telemóvel no bolso.
Quem sabe, não tenha eu inspirado aquele bombeiro a escrever um outro guião para peões que não prestam atenção quando andam na rua.
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