Um dia, que eu não lembro, ele saiu de casa.

Num outro dia, que eu não lembro, a nossa família dividiu-se em duas.

Ainda noutro dia, que eu também não lembro, o amor entre eles acabou. Para sempre.

“Divorciada, com duas filhas?”

“Divorciado, sem as duas filhas?”

Ser filha de pais divorciados é como assistir a uma partida de futebol entre o clube favorito e o clube da cidade. No meu caso, um jogo entre o FCP e o Beira-Mar, onde torço por um empate amigável, sem lesionados ou desilusões. Não importando o lugar na tabela que ocupam. Deseja-se um empate, porque a vitória de um é sempre a derrota do outro.

Mas nem sempre assim o foi. Houve anos da minha vida que acompanhei bem de perto os jogos que eles disputavam. Zangas, movidas por tudo aquilo que se sente quando o amor termina. Até descobrir que não viver por eles permitia imparcialidade.

Nunca fiquei contra ela por causa dele e nunca o amei menos por causa dela. Quando atingi a idade adulta, do qual eles esperavam para me contar desavenças antigas, eu decidi não ouvir. Não querer saber. O passado deles não é o meu, ou o nosso. Nós somos fruto, a extensão de um amor que um dia existiu. É só isso que me importa agora saber.

Estar no meio de um casal divorciado é um desafio para todos. E por todos entenda-se pelas duas famílias, que estiveram na cerimónia e copo de água destes dois. Que não viveram felizes para sempre, juntos. A nós, a minha irmã e eu, calhou-nos a sorte grande. As duas famílias foram imparciais, incansáveis e generosas em amor. Cada família com a sua tendência partidária, mas que votaram e protegeram aquelas meninas, de quatro e sete anos, que nada sabiam da vida. Crescemos nesta sincronia, seguimos o caminho que nos deram e criámos as melhores memórias, a dobrar. Também os meus pais seguiram com a sua vida, connosco ao pendurão. Ganhámos um padrasto e uma madrasta. Sem que atribua o sentido depreciativo que estas palavras, por algum motivo, carregam. (Vamos culpar os filmes da Disney e os livros infantis, onde a madrasta é sempre má e o padrasto não existe. Não se aplica ao nosso caso, de forma alguma). Foi de maneira inocente que os aceitei e os cataloguei no papel que desempenhavam na minha existência. Nenhum dos dois substituía o lugar do pai ou mãe.
Eu sabia disso.
Eles sabiam disso.

No entanto, mesmo que o coração deles tivesse sido novamente preenchido a disputa por nós não deu tréguas. O juiz decidiu que ao atingir a idade adulta poderíamos escolher o nosso rumo. Mudar regras com catorze anos de existência, aos dezoito anos? Tarde de mais, inevitavelmente as nossas relações estavam traçadas. Restou segurar a mão da minha irmã e convencê-la que era só amor que existia entre todos nós. Mesmo que misturado com outros sentimentos confusos.

Várias vezes ouvi a minha mãe argumentar que o cheque mensal cobria a alimentação, mal chegando para o detergente da roupa. Várias vezes ouvi o meu pai a queixar-se do pouco tempo que connosco passava, como se um fim-de-semana de quinze em quinze dias fosse suficiente. Ambos seguiam regras impostas por um qualquer juiz. Ambos seguiam regras que jamais seguiriam se o amor não tivesse secado. Ambos com poder para as mudar, ambos não o fizeram. Era contra a lei.

No entanto, fizeram o melhor que podiam e sabiam. Sem uso de manuais ou exemplos próximos.

Hoje, neste dia, sei que o divórcio foi o melhor futuro que nos deram. Livre de memórias sofridas, falsas noções, traumas e ódios. Prefiro não ter memórias de guerras e mágoas do que saber a definição real do que é uma casa desfeita. A falta de amor traduz falta de consideração, respeito e prudência. Só reconheço a falta de amor porque vivi um e não porque os meus pais são divorciados. O meu amor furado não resultou em filhos. E se um fim de namoro dói, não concebo a dor de um fim de casamento com duas crianças.

Porque eles tomaram a decisão certa, no momento ideal, eu não sei o que é viver sem amor.

Porque eles tomaram a decisão certa, eu ainda acredito no casamento, na família e nos contos-de-fadas com espaço para madrastas e padrastos.

Porque eles se divorciaram, nós somos todos bem mais felizes. À nossa maneira desajeitada, casmurra e bem-humorada, mas muito felizes.

Obrigada.

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2 Comments

  1. ” Não querer saber. O passado deles não é o meu, ou o nosso. Nós somos fruto, a extensão de um amor que um dia existiu. É só isso que me importa agora saber.” – aquilo que todas as crianças deviam ouvir numa situação destas. Assim que li, mandei print ao meu primo. Ele agradeceu a mim, mas principalmente a ti.

  2. A sério, eu sou uma fã incansável deste diário maravilhoso que estás a construir. Não me canso de dizer, adoro a tua escrita, transmites tanta coisa boa, tanto sentimento ❤️
    Parabéns 😘