Abril 2016, algures entre as nuvens:

Refastelada num voo que me devolvia ao Porto, o comandante informa que alguma turbulência nos assustaria o sono. Ansiosa espreito pela janela, na asa do avião, e decoro as caras com quem partilho a fila da ala esquerda.

O rapaz a meu lado encontra o meu olhar e sorri:

⁃Turbulência, hum?

Pergunta-me, em português, com um sotaque estranho. A soar brasileiro, italiano e espanhol. Um sotaque que não decifro:

– Pelos vistos..

– Primeira vez em Barcelona?

– Sim, tu?

– Segunda.

E a conversa não mais terminou. Conversámos sobre tudo. Sem aprofundar pormenores íntimos ou comprometedores. Conscientes que éramos estranhos.

Uma hora de voo decorreu e, ainda sem nos sabermos nomes, confidenciei-lhe que emigraria para os Estados Unidos em dez dias:

– Posso perguntar porquê?

– Preciso de mudar de vida.

Anuiu e não me olhou. Como se a minha resposta fosse esclarecedora o suficiente para nada mais perguntar. Apreciei-lhe a atitude e, estendendo-lhe a mão, apresentei-me. Ele apertou-a e respondeu:

– Cláudio.

– Porquê o sotaque brasileiro?

– Porque nasci em Itália, mas apaixonei no Brasil.

Ri.

Um italiano que fala português, cujo coração ama com samba:

– O que te traz a Portugal?

– O querer mudar de vida. Emigrei para Lisboa, o ano passado, e visito hoje o Porto pela primeira vez.

Sorri.

Eu decidi deixar o meu país, ele trocou o dele pelo meu. Talvez lhe tenha achado algo que eu ainda não encontrei.

Aterrámos. Ajudo-o com as malas, bilhete de metro e escrevo-lhe uma lista com sítios obrigatórios a visitar no Porto.

Trocámos redes sociais e vi-o sair numa paragem do metro:

– Obrigada pela ajuda. Boa viagem, que encontres a mudança que procuras!

– Que Portugal te trate bem!

Balançamos as mãos pelo ar e segui viagem até Aveiro.

Não mais pensei nele. Certa estava que nunca mais o ia ver. Certa de que ele foi apenas alguém que ajudei, vi e falei uma vez.

E mais uma vez, que enganada estava. De Barcelona ao Porto, algures por entre as nuvens, uma amizade brotou. E mantivemos contacto.

Em 2017, o destino trouxe-o a Nova Iorque e ele fez-se ouvir. Conheceu os meus amigos, jantámos, dançámos e deambulámos pela cidade que nunca dorme. Falámos sobre amores falhados, os seus estudos na capital portuguesa e da minha experiência americana.

Em 2018, e sem aviso prévio, marcou presença no Meet&Greet que organizei em Lisboa. Entre a partilha das boas novas, dos planos e viagens futuras surge um convite para a Itália:

– Estás a falar a sério ou a convidar por simpatia?

– Estou a falar a sério.

– Então eu vou!

No dia seguinte marquei viagem.

Melhor não podia ter-me presenteado.

Ele não só me esperou no aeroporto, com um itinerário estudado, como me acolheu em casa dos seus pais. A Ortensia e o Alessandro trataram de mim como família. Como se fosse amiga de infância do seu único filho. E mesmo que não houvesse língua fluente comum, eu não falo italiano e eles não falam inglês, entendemo-nos. A cadela da casa, a Daisy, não me passou confiança durante toda a minha estadia. Mas feliz fiquei quando me deixou de latir, talvez porque lhe esgueirei as cascas do queijo por baixo da mesa.

O Cláudio também me apresentou aos seus e levou-me à formatura do seu melhor amigo. Onde festejei e provei as iguarias italianas.

Ele ofereceu-me o norte de Itália pelos seus olhos.

Incansavelmente. Tranquilamente. Sem desculpas ou falta de vontade. Sem stress, horários ou complicações.

Como um verdadeiro amigo faria.

Com a felicidade no olhar, a tranquilidade na voz pausada e a delicadeza com que os livros devem ser folheados.

Em cinco dias, cumprimos os planos que ele havia estruturado:

– Vais conhecer os sítios principais onde “Call me by your name” foi gravado. Adoras o filmes, verdade?

Não contive o brilho alegre no meu olhar perante este gesto surpresa, e de consideração.

Esta manhã, em tom despedida, pedalámos até o rio Po. Atirámos as bicicletas para o chão, corremos a mergulhar os pés na água fria e deitámo-nos na relva. Sem telemóveis. Lado a lado, a olhar o céu.

E mesmo que sempre nos tenhamos ouvido até ao fim, agora poucas palavras nos demos.

Há nostalgia no ar. Não pela tristeza de um adeus, mas pela incerteza dos nossos futuros. De dois jovens que querem ser adultos:

– Cheira mal… cheira a bosta de vaca!- constatei, quebrando o silêncio.

– A mim cheira-me a casa.

Ouvem-se gargalhadas pelo ar:

– A minha cidade também não cheira nada bem..

– Sinto-me só em Lisboa, não me sinto em casa… Não me sinto como aqui. É aqui que estão as minhas raízes. É aqui que estou e sou feliz, entendes?

Entendo bem de mais o que me diz. Desejaria até não o compreender tão bem:

– Acho que está na hora de nós dois regressarmos a casa, meu amigo!

Ficámos ali, perdidos em pensamentos que nos confortassem.

A decifrar as nuvens e o futuro.

A deixar o tempo voar.

A ouvir o canto das cigarras.

A ver crescer uma amizade.

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