A água do chuveiro desliza pelo meu corpo, entrelaço o cabelo pelos dedos e quando alcanço o shampoo vejo-o. Um focinho branco com a ponta do nariz preta, em forma de coração, que espreita pela cortina da banheira. Sorrio. É a Lola, a fiel companheira desta semana, mais presente que a minha própria sombra.
Foi uma simpática sugestão que me trouxe a Lola.
Inscrevi-me numa aplicação que permite tomar conta ou passear os cães cujos donos, atarefados, necessitam ajuda extra. Nesta aventura emigrante, há dias em que desejo ter um cão, um Samoyed branco de nome Hazel, mas o estilo de vida que me faz feliz não permite ser responsável por outro ser vivo, além de mim. E eu já dou algum trabalho. No entanto, tenho saudades de estar rodeada de animais, não falantes, e como exerço uma profissão remota e flexível permiti-me abraçar esta ocupação.
Numa manhã, abri a aplicação deparei-me com a Lola. Uma cadela de nove meses que procurava alguém que a adotasse por cinco dias, uma vez que o seu dono ia viajar. Indiquei-me disponível e fui eleita para a acolher, numa espécie de Airbnb com caminhadas atreladas e regime de tudo incluído.
Cautelosa conduzi até ela. A Lola é um Pit Bull, e por tudo o que ouvi e li criei, falsos, medos. Receei que me atacasse ou me levasse algum membro vital. E de facto levou. Se metade do coração da Camila está em Havana, o meu está na Lolalândia.
Saudou-me com simpatia, subiu para os assentos traseiros e bati a porta do carro. O dono, comovido, acenava das escadas do prédio. A Lola enterrou-se no banco numa profunda tristeza, como se tivesse sido abandonada. Nunca vi um animal tão desolado na vida. Tentei animá-la, estendendo a mão e a alterando a voz para algo mais canino, e irritante. Não resultou. Chegadas a minha casa, desdobrei a sua almofada gigante e deitei-me a seu lado. Farejou-me e, timidamente, lambeu-me a bochecha esquerda. Desafiei-a, percorrendo a sua boca com o meu indicador e ela mordiscou-me a ponta do dedo. E foi assim que nos conhecemos. Sem medos uma pela outra.
Horas depois corria pelo pequeno espaço e saltou para cima do meu, imaculado, sofá. E, surpreendentemente, não enfartei. Estendi dois lençóis velhos pelo sofá e cama e não importou que tudo cheirasse a Lola. Porque tudo se lava e limpa. E neste momento tudo era Lola. Honestamente, como negar uma conchinha canina ou umas lambidelas matinais?
A Lola foi o único cão com quem convivi 24h ininterruptas. E claro que há peripécias a desvendar, não fosse esta uma estória da Alice.
Na primeira madrugada, reparei que o azulejo da cozinha estava sarapintado de vermelho. A Lola virou “mulher” durante o meu turno e tive que recortar um, grande, par de cuecas minhas. Ela não achou piada quer às ceroulas azuis, com bolinhas brancas, ao penso higiénico ou ao elástico com que atei o pano que sobrou. De manhã fomos comprar fraldas, ela continuou sem achar piada.
No dia seguinte, durante uma visita à cave do meu prédio, a Lola mastigou algo que não devia. Voei até ela assim que a ouvi roer algo. Abri-lhe a boca e retirei o que consegui. Senti-me tão culpada e má dona substituta. Controlei as horas que se seguiram ao minuto, atenta aos sintomas que o pouco que engoliu podia causar. Imaginei o pior, como acontece em ocasiões de angústia. Felizmente nada aconteceu. Realisticamente, e analisando os factos, pouco poderia ter ocorrido.
Aprendi com a Lola que os animais sonham, vêem-se ao espelho, obedecem a comandos de voz e não a línguas, ressonam como um ser humano, sofrem de preguicite aguda matinal e são manhosamente inteligentes. Quando contrariada, a Lola enterrava a cabeça entre as patas da frente ou beliscava-me com mordidelas de amor. E eu derretia-me toda, claro está!
Cinco dias e a minha rotina entrou em vias de extinção. Raramente saí de casa. Poucas foram as vezes que escrevi e quase virei mulher das cavernas, por opção. A Lola é muito amor e partia-me o coração deixá-la só. Quando, obrigatoriamente, saí ela chorava tão sofridamente que me fazia questionar a importância dos meus afazeres. Todos os minutos ausentes pesavam-me a consciência. No entanto, aquando chegada a casa a Lola não escondia a excitação e alegria em me ver. Eu pedia-lhe desculpa. Como se ela me entendesse.
Ter um cão é como fazer parte de uma equipa. Juntos nas vitórias e derrotas da vida. Requer quantidades abundantes de responsabilidade, dependência, paciência, carinho, atenção, conforto e amor. É um casamento entre espécies diferentes, sem pedidos de tempo ou divórcios. Um laço canino deverá ser para a vida toda. Adotar ou comprar um cão só para que os nossos momentos solitários sejam entretidos, não é um motivo razoável. Um cão é um ser vivo, não descartável. Talvez se fosse este o pensamento geral, vivêssemos num mundo, animal, mais humano.
Lola.
Minha querida Lolita das fraldas, cuidei de ti como se fosses minha.
Espero um dia ter uma companheira tão amorosa e atinada quanto tu.
1 Comment
Nahhhh a Alice não é só maravilhosa nas escritas de amor … É um dos seres humanos mais intensos que sigo… consegue fazer-nos sentir pormenorizadamente o que escreve , o que sente o que vive ! Adoro estes textos….top girl!