Posso eu deixar esta folha em branco, e ser este o meu luto.
Posso eu escrever uma bíblia de palavras sofridas, descrever momentos dolorosos e ser este o meu luto.
Posso eu só vestir preto, só amarelo, ou todas as cores ao mesmo tempo, e ser este o meu luto.
Posso eu rir vinte vezes. Chorar três. Rir e chorar ao mesmo tempo. Chorar e não rir. Não rir. Não chorar, não estar, não falar, não dormir, não sonhar.. e ser este o meu luto.

Tudo isto pode ser o meu luto de hoje. E certamente, não será o meu luto de amanhã.
Porque nunca é igual. Porque nunca passa. Porque nunca traz de volta quem por luto estou.

Estar de luto é como estar nua no meio da rua, no meio de um mar de gente.
Todos me vêem mas ninguém dá por mim. Nem eu dou por mim!

O luto é a abstenção de sentimentos. O conviver com uma dor que não escolhemos. Estar de luto é estar em guerra, connosco e com o mundo. Estar de luto é ter a certeza de tudo e não saber de nada. Ao mesmo tempo. A toda a hora. Estar de luto é não saber lidar com a minha dor ou com a dor dos outros. É a vida dos outros perder importância, é ver a nossa vida escapar entre os dedos.
O luto é a dor que me esmaga o peito quando acato a realidade. No entanto, feliz sou quando dou por mim a sentir, quando ainda sinto através dele.

Dá-me medo, o luto.

Não é quando me atiro para o sofá, nua e de luzes apagadas que tenho medo do meu luto. É quando não estou sozinha que tenho medo. É quando estou em todos os outros lugares, rodeada de todos os outros, que perco o foco. Quando me permito sentir, perco o rumo. E já perdi eu o rumo algumas vezes…
Numa pista de dança, quando uma música me lembrou dele e me perdi num pânico vazio. Outra vez, no corredor dos iogurtes do super-mercado, quando uma marca me lembrou dele. Abandonei o carrinho cheio e saí. Como quem sabia para onde ir, sem saber.
Já também perdi o rumo sem motivo aparente. No trabalho. Na praia. Nas ruas de Nova Iorque. Nas aulas de dança. Contudo, perco sempre o rumo quando momentos felizes me acontecem. Porque dei a mão ao sofrimento e desaprendi a ficar feliz. Nao aprendi ainda a estar incompleta, desmembrada, sozinha e feliz.

A verdade é uma: Passei a vida a preparar-me para a morte de alguém, e esqueci de me preparar para a minha morte. Para saber o que fazer se me morresse ainda em vida. Para viver na minha morte.
Sou um corpo inabitado.
Sou peixe fora d’água, a saltitar entre a vontade de morrer para a vida ou de viver quase morta.
Tenho a mente doente.
Estou contra mim. E eu nada me fiz.
Estou contra o mundo. E o mundo nada me fez.
Estou contra a vida sem ele.
Estou contra a felicidade, sem ele.
Estou sem ele.
Eu, estou de luto.

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1 Comment

  1. Susana Gameiro

    Uma descrição perfeita, Michelle. Cada vez me surpreendes mais com a tua escrita. Este texto foi das melhores coisas que os meus olhos já leram nos últimos tempos e tocou-me mesmo. Muita força, e muitos parabéns por mais uma excelente obra de arte, por seres tão “tu” a escrever.