A Isabela era respingada, traquina, teimosa, apaixonada, solitária e leal.
Uma lealdade que a deixou só, para sempre.
Recordo-a já idosa, alegre e com um riso contagiante. Tinha sempre algo a acrescentar e a última resposta era dela. Nunca faltava com uma anedota ou história. Sabia tudo sobre todos, porque a vida dela era a vida dos outros. Era amante de um bom vinho, de comer pouco mas bem, de caminhadas madrugadoras, gorros e tamancos. A sua companhia éramos nós, a televisão e o Blacky. Um rafeiro preto que a alertava dos barulhos imprevistos.
A Isabela tinha a particularidade de repulsar centros de saúde, clínicas e hospitais. Na verdade, quem gosta? Ela detestava-os e fugia deles a sete pés. Mesmo que precisasse, mesmo que fosse urgente ou vital. Ia somente arrastada pela irmã mais velha e mais teimosa que ela.
Aceitei o jeito de viver desta mulher porque era família. Eu, uma adolescente, com pouco interesse nas histórias de vida dos mais idosos, como se eles fossem desprovidos de passados fascinantes. Aquela mulher era para mim como um pedaço de mobília que se toma como garantido, que se esquece que ali está. Não lhe dando a importância ou atenção que lhe é merecida. Até um dia que tudo mudou. Um dia, sem acontecimentos trágicos, foquei-me nesta mulher e quis saber do seu passado. O porquê de não ter filhos, marido, o medo dos hospitais e o conforto em estar só. Quando a oportunidade surgiu, questionei quem de perto a conheceu, antes das rugas e da solidão. E não voltei a olhá-la da mesma forma.
A Isabela perdeu-se no labirinto do amor e nunca lhe encontrou saída. Assim como eu, na versão moderna de um nó de amor, que não desfiz. A Isabela é a personificação de que só se ama loucamente uma vez. Tão desvairadamente que é impossível voltar a amar outro alguém da mesma forma.
Conheceu o amor no florescer da juventude e no tempo da guerra colonial. Encontros, olhares e cumplicidades suspendidos por alguém que decidiu começar uma guerra. Fugazes mas bastantes. A Isabela sentiu o amor pela primeira vez. E o amor naqueles tempos era expresso por cartas, vestia uniforme, navegava em águas de guerra e podia voltar morto. Ele nomeou-a como madrinha de guerra, a quem escreveria e quem fielmente esperaria pelo seu retorno.
Imagino-a a correr descalça pelo cimento à espera do carteiro. A sua excitação ao pegar na carta, a rapidez com que lia todas as linhas, a força com que apertava aquele pedaço de papel contra o peito e o desejo que tinha que a guerra terminasse. Talvez não desejasse outra coisa na sua vida, somente que ele regressasse vivo e para ela.
Ela esperou.
Durante anos ela esperou.
Foi-lhe fiel e leal mesmo quando ele deixou de escrever. Mesmo quando a guerra terminou e ele voltou vivo mas para os braços de outra mulher. De uma outra madrinha de guerra, nunca antes citada nas cartas que leu.
Uma outra mulher, que não a Isabela.
Houve alguém neste amor que morreu e o ultramar não foi o assassino.
Ele casou e deu filhos ao mundo. A Isabela não voltou a confiar o, que restou do, seu coração a outro alguém. Ficou a viver com a mãe, viu todos os seus irmãos e irmãs casarem, foi tia e tia-avó. Quando a mãe dela morreu, viveu sozinha. Recusando companhia ou outro espaço que não aquela casa onde sempre viveu. Perdeu o brio por ela e a confiança por tudo e todos. Exceto pela sua irmã mais velha e pela igreja. Não acreditava também que alguém pudesse cuidar dela e daí o ódio pela medicina. Nenhum hospital podia suturar a ferida que tinha. Achava-se capaz de curar as próprias feridas e dores.
Assim se passaram décadas. Assim se perdeu uma juventude, os anos áureos e uma vida. Assim a Isabela se transformou na mulher que partilhava a mesma mesa que eu, ao Domingo.
O passado dela eletrocutou-me os sentidos e senti-me ridícula. Quando a vi, beijei-lhe a face e encurralei-a num abraço apertado. Ela soltou uma gargalhada confusa. Nada mais poderia eu fazer se não demonstrar que ela pertencia a alguém. A mim e a nós.
E tentei que assim fosse até ao dia que ela me olhou nos olhos e, momentaneamente, não me reconheceu.
Até ao dia que a perdemos.
A Isabela ensinou-me que ninguém anda no mundo sozinho. Somos fruto de um passado, de escolhas alheias e nossas. Somos um presente e um projeto futuro. Não somos uma página em branco, num livro em branco. Todos temos uma história.
Esta é a da Isabela. A do amor sem o final feliz.
Uma mulher que amou uma única vez e para a vida toda.
E neste dia internacional da mulher, um bem haja a quem estima e trata uma mulher com a dignidade e verdade que ela merece. Aliás, que todos os seres humanos merecem.
As atitudes tem consequências, umas ultrapassáveis outras fatais. Enganasse quem pensa que elas ficam somente com quem as tomam.
1 Comment
Estou sem palavras para este texto. Na verdade, acabei o texto a sentir um aperto no coração. Um aperto no coração, porque esta é a realidade de muitas pessoas, que por conta de quem lhes magoou, se isolam em si mesmas criando barreiras e fechando-se em si. Pessoas essas que dizem não precisar de ninguém, mas que lá no fundo só queriam que as pessoas em sua volta, ou outrora amigos, lhes pudessem abraçar e fazê-las sentir merecedoras de tal.
Adorei o texto e ainda bem que te encontrei e a este blog. Todo ele uma lufada de ar fresco inspirador.