Saí da aula frustrada e agitada, nem a dança me abstraiu hoje. Ir sozinha para casa não me entusiasmava. Abri o Yelp e caminhei para um bar nova-iorquino.
Bati a Corona na mesa redonda. Guardei o telemóvel no bolso interior do casaco de ganga, despi-o e pendurei-o nas costas da cadeira de metal. Queria estar só. Sozinha comigo mesma, sem nada que me arrastasse para o mundo social. E foi ali, quando preparava para me encontrar, que ele entrou.

Um jovem bem mais novo que eu, com um olhar agitado, os passos lentos e as costas curvadas de timidez. Procurava alguém que ainda ali não estava. Sentou-se na mesa a meu lado, tão perto que lhe via o abanico do pé pelo canto do meu olho. Está nervoso.

Tateou o botão central do seu telemóvel e, sem novas notificações, guardou-o no bolso. Tal e qual como eu havia feito.
Atentou para o relógio no pulso esquerdo e arrastou as mãos pela ganga, que lhe delineava as coxas.
Está nervoso, o rapaz.
Tão bonito e inocente. Que rapazinho amedrontado. Olhou em redor, levou a mão ao bolso das calças e retirou um bilhete dobrado. Estava tão perto de mim que consegui ler, escrito a caneta fina preta, o nome “Mella”. Ele sorriu para o bilhete, acariciou-o com os dois polegares e escondeu-o. Matava tempo com o olhar, estudava o espaço circundante e encontrou-me. Sem que eu o deixasse apanhar os meus olhos estudiosos. Conseguia sentir o olhar dele cravado na minha bochecha. Pensou ele que eu não era perigo, que não lhe estava atenta. Mal sabia ele que encontrei no seu comportamento ansioso a distração que procurava. Mal sabia ele que atenta lhe estava e o pintava em palavras no meu diário castanho. Pressentia que algo de importante estava para acontecer. Pressentia que uma faceta do amor se ia revelar ali, bem do meu lado, e por isso esperei.

A porta do bar abriu, ela entrou, ele endireitou as costas na cadeira e eu soube, imediatamente, que aquela era a Mella. Esguia, morena, com calças justas, curtas e pretas. De t-shirt preta trilhada nas calças justas e de mocassins cravados com duas pérolas branco sujo, na ponta dos sapatos. Ela procurou-o, ele elevou timidamente a mão direita e ela apressou o passo a caminho dele. Abraçou-o sem cerimónias, como quem abraça um tio presente. Sentou-se na frente dele e espaçou os dedos direitos pela cabeça, atirando o cabelo rebelde, desmaiado sob o lado esquerdo, para o lado direito.

Ela é linda. Tem um rosto egípcio, um sotaque de Espanha, um olhar penetrante e um descuido nas distâncias de convivência social. Fala com as mãos, toca no rapaz como se colorisse as suas palavras. Ignorante do tanto que ele, em silêncio, lhe diz.

Ela fala, fala, fala.

Fala tanto e partilha tão pouco.

Ele escuta, sorri, observa-lhe as rugas sorridentes, o seu jeito de menina e a sensualidade que o derrete. Eu sorrio também, enquanto pego na cerveja. Sorri porque vi o amor. Vi o amor na ponta dos dedos dele, que brinca a puxar e a empurrar o bilhete dobrado no bolso das calças. Estaria ele a encorajar-se quando ela lhe abanou as mãos e o convidou a falar. Tua, vez, vai. Diz ela apressada.

Ele falou do tempo. Disse que estava demasiado calor e que quase derretera a andar até ali. Ela sorriu, entediada, e retomou o monólogo sobre ela.

Rio sozinha, com a cabeça enfiada no meu diário.
A Mella é amada, por ele, talvez sem saber. Ela é a rapariga que ele gosta, e que gosta muito. Ela é a miúda que o leva a decifrar a meteorologia, que o intimida a falar e que por isso o faz escrever. Talvez seja ela o seu primeiro amor, aquela que ele vai lembrar para toda a vida, que o faz esquecer do telemóvel, que faz nascer as borboletas, que lhe faz suar as mãos e que o obriga a esconder o coração. É ela quem ele quer ouvir falar de tudo e de nada, durante todas as horas do dia e que a quer perto. Bem mais perto do que agora está.

Queria eu empurrá-lo. Queria eu que ele encaixasse as mãos no seu rosto, de régua e esquadro, desenhado, lhe afastasse o cabelo rebelde e a beijasse. Queria eu que ele se libertasse das palavras que o sufocam. Mas ele tem medo da incerteza.
O bilhete para a Mella continua a deslizar pelo bolso, o pé pendurado continua a balançar e as mãos continuam a esfregar nas calças. Terá medo de a afugentar com a sua verdade. Só ele sabe há quanto tempo gosta da Mella. Quanto tempo demorou até ali estar, frente a frente, com ela a despejar histórias vazias. Os estratagemas, planos e diálogos internos que a cativaram e a trouxe até ali.

O telemóvel da Mella tocou.
Tenho de ir, falamos depois. Pode ser?
Claro! Quando quiseres.

Pegou na mala a tiracolo, abraçou-o sem cerimónias, e saiu do bar.
Ele expirou, como se tivesse emergido de um mergulho longo.
O pé parou de abanar. Fez o bilhete escapar do bolso e deu-lhe luz. Rodopiou o papel dobrado pelos dedos.

Não foi a primeira vez que a Mella lhe escapou, percebi isso na expressão desiludida e zangada que lhe inunda agora o rosto. Voltou a não ter coragem, talvez nunca a venha a ter ou talvez, num outro dia qualquer, perca a calma e interrompa os monólogos da Mella com o amor que o arrebata. Ele inunda-se de frustração e afoga o bilhete no copo de água com limão, que nem dei conta da servente pousar na mesa. Retira a bola de papel ensopada do copo e amassa-o na palma da mão.

Com o punho cerrado se levanta.
Com o punho cerrado, sai do bar.

Encaixo a palma da mão esquerda no queixo, sigo o rapaz com o olhar.

Quis eu agradecer-lhe por me relembrar o amor. A pureza, a inocência, a paixão, a coragem, o respeito, a timidez e a vontade em deixar fugir o coração.

Quis eu confortá-lo.

Quis eu dizer-lhe que amar assim não é pecado ou escolha. Que era felizardo por gostar assim, como nos filmes se vê.

Que tudo ia correr bem, escolhesse ele o caminho da coragem ou da timidez.

Quis eu que ele escolhesse ser livre, um dia.

Mella, a que no nome traz a nostalgia de um coração aflito.

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2 Comments

  1. Maria Gomez

    “Quis eu dizer-lhe que amar assim não é pecado ou escolha. Que era felizardo por gostar assim, como nos filmes se vê.”

    A tua escrita apaixona!!!!

  2. Verónica

    Foi a primeira coisa que li quando entrei hoje pela primeira vez no teu espaço.
    Muitos parabéns pela tua escrita. Há muito escritores famosos que não fariam a descrição detalhada que fizeste tão bem, com tanto sentimento. Ao ler o teu texto consegui visualizar com muito detalhe toda a história. E que história tão bonita… ou tão triste.
    Fiquei muito fã. Vou voltar!
    Muito sucesso.