Foste o primeiro dos primeiros, a cobaia, o palco de histórias, o cúmplice de longas chamadas, o amparo de tantas lágrimas e o espectador de risos e roncos. Foste fabricado sem direção assistida ou ar condicionado, mas escolhi-te mesmo assim. O porquê da minha escolha não importa. Foste o primeiro e o primeiro nunca se esquece ou compara.
No Inverno transporta-te a minha tripla camada de roupa, meias e má disposição, mas no Verão eramos nós e o mundo inteiro a entrar pelas quatro janelas, à manivela.
Apesar de todos os defeitos e mau-feitio de que eras dono, agradeço-te por jamais me teres deixado a pé. Nunca falhaste com o teu principal dever, apesar das várias ameaças, e sempre me levaste a casa quando, irresponsavelmente, a minha visão não era a melhor.
Louvo também a tua paciência perante os meus gritos estridentes, de rouxinol, quando tentava cantar Adele ou todas as outras músicas que não deveria ter cantado. Reviravas os faróis sempre que o fazia e talvez por isso tenhas queimado o meu mp3, mas não te guardo rancor. Obrigaste-me a explorar a rádio portuguesa e se ouvirmos bem, às 3h da manhã, o Oceano pacífico nem é mau de todo!
Em tom de despedida, espero que perdoes as pinturas, rupestres, interiores e exteriores que te fiz e fizeram. Desculpa por te ter enchido de migalhas, tralhas e cabelos, pelas manchas de vinho tinto, pela sede que te fiz passar e por te ter esmurrado, duas vezes, contra o portão e parede da minha casa. Foi mesmo sem querer.
Dizem que a dor de ver o teu primeiro carro a ser conduzido por outro alguém é igual à de ver o teu ex. com outra. Felizmente a primeira parte nunca me aconteceu. Não ia saber reagir ou lidar com o sentimento de perda, talvez te perseguisse, gritasse Bolinhas pelas novas janelas automáticas e chorasse sobre o teu capô azul.
Muito fica por contar mas quero que saibas que és lembrado com saudade.
PS: Não esqueço quando amuaste e me impediste de entrar, deixando-me na rua só com a possibilidade de entrar pela mala. Mais uma vez, sem ressentimentos, seu mau-feitio!
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