O menino que andava de mãos nos bolsos para arreliar os pais, o irmão calado, o marido sereno, o pai solidário e o avô disponível. É o culpado de elevar o meu conceito de Homem. De reconhecer um Homem, quando vejo um. Não se lhe contam histórias de vícios mundanos, sejam eles de qualquer espécime. A carne, conhecida por ser, fraca nunca enxovalhou as prioridades do Cascais. O bem-estar familiar, a todos os níveis, foi sempre a sua preferência, não obrigatória.

O Cascais é dos à moda antiga. Daqueles que se moldam à vida, que contornam e encaram os obstáculos de peito feito. Sem medo, sem falta de coragem, com bem-querer e empatia. Dos que ajudam e defendem os outros, mas muito mais os seus.
A palavra dele é a sua dignidade, e vale bem mais que qualquer contrato escrito ou aperto de mão.

Por este homem eu coloco as mãos no fogo, de olhos vendados. Nunca o ouvi desrespeitar outro alguém, mesmo lidando com mulheres tufão que o escolheram como o apaziguador. Maltratar uma mulher, desrespeitá-la com traições, palavras e pancadas só os cobardes se atrevem. Camuflar os cobardes é, igualmente, cobarde. E porque o Cascais não assim foi criado, nunca partilhou desses fastios. E quando soube que o tinham feito às suas, foi para a rua caçar o animal. Pagando o preço que fosse.

Este é o Cascais.

E o Cascais é meu avô.

Foi ele quem deu a palavra final quando, quase, me batizaram de Stephanie. Defendendo que de Stephanie a Estefânia era uma distância bem curta.
Quem me deu a primeira pinga de álcool, quem me ensinou a pescar, a debulhar o milho, a amanhar o peixe e a depenar as galinhas escaldadas. Quem queria um neto e foi abençoado com três netinhas. Terei sido eu a maria-rapaz, que preencheu esse desejo.
Quem nunca me recusou boleia ou tostão, até hoje.
Quem nunca faltou com a pergunta de final do ano letivo:

– Então, passaste de ano ou quê?

A minha resposta quis sempre que fosse sim. Porque o receio de não orgulhar o meu avô era maior.
Da primária à Universidade a pergunta nunca faltou.

O meu avô é um homem de horários, o mais pontual que conheço, e por pontual entenda-se chegar quinze minutos antes da hora prevista.
É dono de uma linda caligrafia, cujo M de Manel inspirou as minhas assinaturas. Tem sempre envelopes brancos de sobra, arrumados na secretária escritório onde lê as cartas importantes. E em todas as calças moram lenços de pano lavados, e dobrados em quadros.
É também o homem dos sete ofícios e eu, consequentemente, também. Militar, motorista, construtor, caçador, pescador, cozinheiro e agricultor. (Dos agricultores que não deixam faltar couves, batatas, cebolas ou ananases nas hortas e estufas. Ele é assim).
O meu avô ensinou-me que não devo ter medo, vergonha ou preguiça de trabalhar. Que todos os trabalhos são dignos quando feitos com dedicação e amor.
Ensinou-me também que não mereço uma medalha de participação por partilhar o meu tempo com ele.
E que honra é reconhecer e partilhar o meu carácter com um homem tão grande em respeito.

Vi-o chorar uma única vez, bastante para não esquecer. Bastante para saber que foi a primeira vez que vi um homem chorar. Quando os seus olhos azuis se inundaram e entornaram, eu não soube ou quis reagir. Senti-me mais pequena do que era, e sou, e mais inútil, do que alguma vez possa ser.
Um homem que chora e que ri, ri muito mais.
Tão boa é a gargalhada do meu avô…
Quando os olhos brilham, a cara enrubesce e o corpo encurva para ganhar fôlego, ela vem. Não há som igual. É daquelas que contagia, que alegra e que faz rir todos que o rodeiem. Faz-me viajar no tempo, faz-me imaginar como seria ele em criança.

Avô,

Escrevo-te com amor e saudade.
Desejando que este texto te chegue em mãos, por um papel dobrado em três. Escrito em letras gordas, não exageradamente grandes porque vês melhor que todos os meus amigos juntos. Que os teus olhos azuis enxerguem a estima e valor que no meu peito tem teu nome.

Quereria agora ver-te lá no fundo do quintal.

Quereria agora um dos teus abraços desajeitados.

A tua neta, a do meio.

Author

Comments are closed.