Ele corria, de calções justos e azuis, com o emblema do GDG ao peito. Marcava golos, e tão alto a plateia ecoou o nome dele que por toda a Gafanha ficou conhecido.
Ele, o Rita.
De militar, a emigrante. De quebra-corações, a pai de família, a homem de responsabilidades e a filho saudoso. No bolso das calças, um divórcio e duas pequenas. No coração, um amor leão à moda antiga. Daqueles que obriga a crescer, a ser-se de palavra, a não tomar como garantido, a querer mais e a não desistir.
Patriarca, família e palavra.
Era ele.
Ele, o meu Rita.

O ser humano mais leal, em quem os meus segredos pousavam.
A sua palavra era lei, era fogo, era escudo e bala de pistola. Era espírito de camaradagem, era a resiliência, era honra, inteligência, compromisso e desafio. O Rita era casca dura e coração de manteiga. Humor afiado e risada de menino. Era determinado e voava alto.
Deu-me asas. Deu-me o desporto, o ténis e o atletismo. O gosto pelo futebol, pelo futsal e pelo andebol. Deu-me o amor à pátria, deu-me os burriés, os petiscos nacionais, o bagaço e os bifes de cebolada.
Deu-me vida.
Deu-me esperança.
Deu-me paz e segurança.
Fez-me saltar de pranchas, andar de mota de água, avião e barco. Fez-me gostar dos piqueniques e das viagens de carro atulhado de gente. Fez-me gostar do sol, da água azul turquesa, de Timor e da Tailândia. Fez de Bali o meu destino favorito.

(Tanto mais eu lembro: Os jogos da Nintendo, os Peugeot’s, as caminhadas na praia, os percebes, as casas abandonadas, o mini-golfe, o jornal “A Bola” e da descida da ponte que dava um arrepio na barriga. Da Praia da Vieira, do Vagasplash, do bacalhau na ponta de um pau para apanhar caranguejos, dos mergulhos na ria, dos contratos assinados, dos alertas para a mudança do óleo do carro e dos enigmas sarcásticos.
Do bowling, das sessões fotográficas, da regueifa.
Tanto mais eu ainda lembro).

Fez-me respeitar quem usa uniforme.
Fez-me mulher.
Fez-me sempre crer que era mais do que me achava ser.
Fez-me mulher.
Fez-me acreditar que me defenderia e apoiaria até depois da morte. E cumpriu, ainda o cumpre. Esta lealdade infinita, que nos uniu, que nos fez melhores amigos. Que nos fez cúmplices e parceiros de equipa. Que nos fez um. Que me fez amá-lo…
Amei-o tanto, amo-o tanto.
Merda, que o amo ainda mais agora!
Sou lhe tão igualmente leal que a primeira coisa a fazer quando morrer é procurá-lo.
A ele, ao meu Rita.
Ao meu pai.

Conhecia-lhe a íris, a verdade na voz, os actos impensados e os planos cautelosos.
Conhecia-o como antes me conheci.
Toda a minha vida eu o defendi também. E agora, defendo-o do esquecimento. Borrifo-me com o perfume dele, que ficou sozinho na estante da casa-de-banho. (E eles perguntam-me porque cheiro a homem).
Visto-lhe a roupa que recolhi das gavetas, roupas que um dia lhe comprei no Natal e aniversário.( E elas perguntam porque a roupa é tão larga).
Reparo nos ímanes espalmamos no frigorífico, de todos os lugares que visitei. (E pergunto-me se agora pertencem a ninguém).
Vejo os troféus das damas, as garrafas guardadas para ocasiões especiais, as memórias encaixilhadas e o computador desligado. Abro a porta daquele quarto, que ele fez meu, e vejo-me trajada. Vejo o grande cão de pelúcia, branco e cinzento, deitado na cama. Que ele me deu, e eu dou hoje a outra criança. Vejo as estatuetas das santas que ele comigo comprou, quando cismei em coleccionar todas as santas do mundo. (Nunca conseguimos a Yemanja).

Cheiro-o ainda pelo ar, sinto-o nas minhas costas, vejo-o em carros que me passam e nas multidões. E no céu estrelado. Ouço-o nas vozes dos Kelly Family, Credance, Eagles e Rolling Stones. Ainda lhe ouço a gargalhada quando o Mister Bean almoçava connosco aos sábados. Não lhe esqueço a voz.
Tudo é ele. Sempre tudo foi ele.
Eu sou-lhe o humor sarcástico, a patetice, a casmurrice e mau-feitio. As ideias solteiras, a confiança na loucura, a arrogância na verdade, a procura pela lógica e o asno pela mesquinhez.
Sou-lhe o amor que tinha pela fotografia, pela escrita e pelo mundo.
Sou a continuação da viagem dele.
Sou a carcaça que lhe sente falta, sou os dedos que lhe querem tocar, sou o ar que ele não respira, sou o que ele não vê.

Eu sou ele. Eu sou Rita.

Parabéns, pappy.

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2 Comments

  1. Liliane

    Que texto bonito.
    Quem me dera ter assim tantas memórias do meu pai, que também já partiu. Lamento dizer que, passe o tempo que passar, a saudade é eterna. Já lá vão nove anos e meio. Parece que foi ontem. Parece que foi em outra vida.

    Um beijinho.