Falava da dor quando da dor nada sabia. Quando nunca antes havia sentido tamanho sofrimento. Quando desconhecia que a dor tem etapas e níveis, como os elevadores e as escadas. E falava eu sobre a dor…
Como queria agora essa dor antiga que me fugiu.

Escrevia sobre saudade, quando da saudade eu nada sabia. Quando havia formas de a atenuar e resolver. E mesmo assim, escrevia eu sobre a saudade. Esta saudade que sinto agora? Desta, eu nada sei.
E mesmo que não queira ou me apeteça lidar com ela, não me é dada escolha.

Arrancaram-me o coração do peito, sem anestesias ou ameaças. Sem que ele estivesse doente ou a precisar de reparo. Mesmo assim, levaram-no. E num dia, que eu não lembro, devolveram-no. Morto, com as artérias e veias penduradas. Na esperança que o enroscassem no meu peito, como quem conecta os cabos da televisão.
Ele voltou-me ao peito, mas, para além de não funcionar, entrou em curto-circuito com o meu cérebro.

O anjo da morte abraçou o meu porto seguro. Ceifou-o, levou-o e prometeu não o devolver. Sem que eu o tivesse desejado, imaginado ou preparado. Então, sou uma miúda contrariada. Bato o pé, faço birra e não o luto.
Faço de conta que isto não aconteceu e que ele ainda está cá, noutro continente mas ainda sob o mesmo céu que eu. Ouço as mensagens de voz que tenho dele e, apesar de me arrepiar a pele, minto-me nas datas.
Ignoro que o levaram de mim. Ignoro o não saber onde ele está ou não saber como chegar a ele. Ignoro a realidade sem ele, ignoro o futuro sem ele. Ignoro a dor, desprezo esta dor da qual nada sei. E quanto mais ignoro, menos me lembro dele. Como se nadasse contra a corrente, consciente que me estou a afogar.
Estou em guerra. Há guerra entre o pensamento racional e o coração desfeito.

Uma luta que perco, todos os dias. E todos os dias, desisto.

Choro até aflitivamente conseguir respirar.

Grito quando ninguém me ouve.

E vou dar a um beco sem saída.

Rio em alguns momentos do dia.

Aceito a dor.

E percorro um túnel infinito e sem luz.

(Eu tenho medo do escuro).

Imploro para o ver.

Desejo que ele me apareça em sonhos.

E sou assaltada por um vazio inesperado.

Roubaram-me a alma! Na minha mente colaram um post-it amarelo: e esta, como ultrapassas?
Eu soco a mesa, atiro as cadeiras e revolto-me contra o mundo. Não há como ultrapassar isto. Não aceito! Não me obriguem a viver sem ele. Não me digam o que fazer. Não façam de conta que ele está vivo. Deixem-me em paz!

Os monstros existem.

Não aparecem só de noite.

Não têm corpo, cara ou cor.

Não moram escondidos debaixo da minha cama ou no armário.

Quem se esconde sou eu.

O monstro sou eu.

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2 Comments

  1. “Preparem os lenços” – disse ela e bem!
    Eu precisei e não os tinha preparados.

    Mais uma vez obrigada.
    A dor não passa, nós não “esquecemos” e eles olham por nós enquanto nada podem fazer com a nossa dor (sejam pai, mãe, avós, amigos). Mas ao fim de contas tudo vai ficar bem, nós ficamos bem. Força meu amor 🧡

  2. Realmente é verdade o que dizem, que na dor, aqueles que têm arte a correr nas veias, produzem os seus melhores trabalhos. ” Os monstros existem” foi para mim o melhor texto que já li teu Michelle.
    Sinto que apesar de o teres escrito à sombra duma dor terrível, conseguiste para mim, deixar uma luzinha acesa… Obrigada.
    Um abraço enorme 💕