Meia-noite, algures em Sever do Vouga, soam as doze badaladas. Atiro uma dúzia de passas para a boca, dou um gole no champanhe e desço da cadeira.

Admirei as três que ali comigo quiseram estar, sorri e acreditei, confiantemente, no que havia desejado. Este novo ano seria o meu ano. Consciente estava que este é o anseio de todo o ser humano habitante deste planeta. Contudo, nunca antes havia sentido tamanha energia. Como se de uma verdade adquirida se tratasse.

2018 seria meu!

O ano da mudança, do crescimento, do encontro com a mulher que descobri ser. Quando a felicidade me rasgaria o peito e eu renasceria como uma fênix.

Mas, sem aviso, a vida puxou-me o tapete. Ao décimo dia do novo ano, o meu chão lascou. Lascou, abriu e engoliu-me. 2018 tornou-se o ano mais desafiante de toda a minha existência, e por isso também o mais difícil. Perdi muito mais do que ganhei. Fiquei sem trabalho, assustei-me com o IRS, deixei que me magoassem e vi o meu pai partir. Para sempre.

Assim mesmo, nesta ordem.

Entre as desgraças também coisas boas aconteceram. Viajei, conheci, cresci e encontrei alternativas. Aguentei a minha fragilidade, chorei sozinha no chuveiro e não perdi o foco. Agora o que sinto é anormal, algo que nunca antes senti e que me assusta. Sinto o nada. Como se me picassem com uma agulha e não sangrasse. Nada, dormência. Abstenção de sentimento. Como aquelas criaturas que falam a toda a hora, que cansam os ouvidos de quem os rodeia, e quando se calam preocupam. Estranhamos o silêncio deles, é um comportamento não habitual e causa desconforto. Pois bem, é isso que sinto em mim.

Estou desconfortável.

Não me curei, deixei de sentir.

No entanto, há momentos de lucidez. Como um raio de sol que espreita pelas frinchas das persianas, num dia de céu muito nublado. Como um arco-íris que sorri depois da tempestade. Este é um desses momentos, enquanto rabisco, num recibo da lavandaria, um discurso de agradecimento.

Há, exatamente, um ano. No dia 24 de Maio de 2017, sentada no chão alcatifado, do quarto alugado, finalizava o blogue que havia criado e queria apresentar ao mundo. Estava encostada à porta bege, a ler o que havia escrito à minha colega de casa. A Jéssica ficou comovida com a forma como li. Não entendeu nada do que lhe disse, mas a Jéssica gosta de mim como não achava possível alguém gostar de alguém, em tão pouco tempo. Viu a alegria no meu olhar, o entusiasmo no tom de voz e presenciou todas as horas que escrevi.

Foi a Jéssica, uma amiga para sempre, que fisicamente ajudou os meus bastidores psicológicos e me motivou a lançar o blogue.

Todos os meus me apoiaram incondicionalmente, escrever era, até então, uma façanha minha pouco partilhada mas bastante sentida. Só uma pessoa me distraiu:

– Um blogue? Com rubricas semanais? Devias focar-te na tua carreira! Deixa essas brincadeiras para depois.

– Mas eu tenho vontade de escrever agora, não consigo deixar para depois.

– Concentra-te nas tuas prioridades, a Alicia tem tempo.

– É Alice.

– Quê?

– É Alice, não Alicia.

– O que for.

Mandei essa senhora à merda, com toda a educação que os meus pais me deram. E ainda com mais rapidez e afinco me fiz a vontade. No dia seguinte, rebentaram-me as águas da criatividade e a Alice nasceu.

Há um ano atrás.

Hoje, estou em frente ao espelho a treinar um discurso de agradecimento. Hoje a Alice sai do papel e viaja para Lisboa, onde poderá subir a palco e ganhar um prémio. E quando este ano teima em me atirar ao tapete em modo KO, é a Alice quem me salva os dias. É através dela que vou sobrevivendo, que vou reaprendendo a saborear a vida. Há quem me diga, em tom de brincadeira, que a minha doença tem nome e cura. Eu concordo, a minha bipolaridade chamasse Alice e a cura é dar-lhe voz.

A vida é um deserto de areias movediças, cabe a ti afundares-te ou deslizares pelas dunas.

Não há nada que tu e eu possamos fazer para evitar que as coisas más aconteçam. Coisas más, como a morte por exemplo. O que se pode fazer é não morrer com a morte dos outros. É lutar, encarar os sonhos com seriedade, ser consistente em qualidade e trabalho.

Sê feliz. Todos os dias, encontra ou sê motivo de uma alegria. Mesmo que difícil.

Não sobrevivas, vive!

Não sejas o que os outros, que te amam ou não, querem fazer de ti. Não és marioneta.

Corre atrás do que acreditas, quem bem te quer apoia-te.

Sê boa pessoa, mesmo que te ignorem.

Dá um sorriso, mesmo que te magoem. Quem magoa está também magoado.

E pelo caminho manda à merda quem te rebaixa e inferioriza. Se te pedirem satisfações culpa a Alice, ela protege-te.

Alice, que mais aniversários venham.

Obrigada.

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