Era cedo, não mais que o habitual, quando uma flecha me rompeu os tímpanos e a minha alma começou a sangrar. Uma onda de sangue afogou-me em dor e me fez esquecer o que ouvi, só quando recuperava o fôlego me lembrava novamente:

-Estás aí?

-Estou.

Perguntei-te centenas de vezes, de olhos postos no céu e com a mão a esborrachar o fio que me deste. A única recordação física que tinha comigo. Não abri mão deste colar todo o dia.

Embarquei no próximo avião para Portugal. Doze horas estive sozinha. Oito delas com a testa colada na janela, a ver o dia transformar-se em noite, como uma onda colorida que lavava qualquer réstia de esperança. As estrelas brilhavam e nenhuma delas eras tu. Não te via, não te sentia e não acordava.

Liguei-te, mas não atendeste. Ouvi as mensagens de voz, li as conversas e relembrei a última vez que nos despedimos. As pálpebras ardem de tanto chorar. As lágrimas escorrem sem permissão e por isso não as limpo, elas secam sozinhas.

Não dormi, não comi e cheguei.

Portugal não é Portugal. Vim sem querer ter vindo, vim obrigada pela vida que me atraiçoou.

A puta da morte traz me a Portugal.

Assim que saio do avião, perco a expressão e congelo. Entrei em negação e em choque. Não reajo, o cérebro fica dormente e o os lábios mexem de cor. Não me falem, calem-se com os pêsames, condolências e sentimentos. Quero silêncio porque quero ouvir-te e não consigo. Quero muito lembrar-me de ti e não consigo, porque todos me abafam. Centenas me prensam o corpo e me beijam a face…

É suposto saber o que fazer? Faço o quê a este amor que me arrebata o peito? Que faço eu agora?

Não procuro respostas. Quero-te aqui.

Perdi o meu pai. Perdi o meu Pai…

Mas ele não me morreu. Há uma vida de memórias, mas não há memórias novas. E isso é o que me mata.

Não vou saber quem lidera o campeonato nacional, quem ganhou no atletismo nem ninguém me vai mostrar os resultados da Eurovisão em directo.

Os meus filhos não vão ter avô. O meu futuro marido não me vai receber pelas mãos do meu pai. Não me vais ler ou receber o meu livro.

Não há mais nada e não haverá vida depois disto.

Tu és o homem da minha vida. Tive a sorte de o te ter dito há quatro meses, quando nos despedimos pela última vez. Não sei porque te disse isso, nunca fomos dessas lamechices. Mas saiu-me, e tu choraste.

Eu choro agora Pappy. E vou chorar todos os dias até perdoar esta injustiça. Vou ler-te as minhas escritas para que durmas em paz. Vou estar contigo sempre. Nunca serás esquecido, nunca serás uma velha memória. Sou do teu sangue e tu a minha assinatura.

São cinco da manhã, acabei de tomar um tranquilizante, dose de cavalo, e o vazio asfixia-me o coração. Sinto-me sozinha e perdida Pap, não sei como viver agora.

Sem ti.

Muito sem ti.

Um para sempre sem ti:

– Estás aí Pappy?

– Estou chaga! Não deixas dormir ninguém.

– Isto são vozes que estou a inventar na minha cabeça, não são?

– São.

Author

4 Comments

  1. Salomé

    Vai estar sempre contigo estejas onde estiveres!!! E quando tu mais precisares tu vais continuar a senti-lo como se nunca tivesse saído do teu lado. Força!!! A força que tu tens e que ele te deixou. Vive por ti e por ele. Um gigante abraço bem apertado e um mega beijo!!

  2. Andreia

    Desculpa pergunta Michelle. Foi agora? 🙁
    As tuas palavras são palavras doces. De quem ama e vai sempre amar. Faço delas as minhas para a minha mãe. Que,já lá vão quase 7 anos 🙁

  3. João Tiago da Silva Tarelho

    Amiga,

    não me tenho manifestado mesmo acompanhando a tua escrita fabulosa. Ja me fizeste chorar hoje.
    Apenas te digo. O teu pai esta nesse texto, e em todos os que escreveste. E esse talento não se perde. Portanto tu nunca o perderas.

    Força, e continua a inspirar. Beijo, de um velho amigo.