Somos de quem se fala depois de se falar do tempo. Se vai chover ou fazer calor.
Somos a conversa de circunstância. Somos os que “estão lá fora a fazer vida”. Há uma, quase, obrigação de se fazer bem “lá fora”, porque há escrutínio ao domingo. Há a saudade e orgulho, numa voz tremida que faz o olho brilhar. Há também um coração sofrido, incapacitado e apavorado com os acasos.
A nossa gente acostuma-se à nossa inexistência física, ao não estarmos presentes ininterruptamente. Habituam-se à nossa ausência, mesmo quando por perto estamos. Perde-se a consistência, quebra-se a rotina e deixamos de existir no registo de chamadas, porque o indicativo português perdemos. A nossa presença, mastigada pela ausência, é alegria nos primeiros dias e sombra nos restantes. Somos espetadores do circo e dos números que nos mantêm entretidos. Também nós tentamos entreter. O importante é que estejamos todos ocupados, quando o que faz falta é todo o tempo que se perdeu. E a culpa é de ninguém.
A nossa gente, que se habitua a não estarmos perto, é a mesma que sofreu quando decidimos ir. Quando nós, envoltos pelo que era novidade, desafio, entusiasmo e obstáculo fresco, não demos tempo à dor. Como uma balança descalibrada, uns sofrem primeiro outros depois. Talvez com o tempo se calibre, talvez com o tempo se encontrem no meio… perfeitamente sincronizados.
“Custa sempre mais a quem fica”, ouço ao longo da vida quando se fala de quem vai. Quem vai com a morte, com a distância e com a saudade. No entanto, não mal interpretem…. Nestes assuntos emigrantes, no impulso de deixar tudo e de apenas ir, não há avenidas de sentido único. Ganha-se e perde-se, em diferentes cadências, intensidades e patamares. Se, para quem vai, a aventura começa com dúvida, descoberta e medo, todavia ultrapassados por uma inexplicável força de vontade e mudança, para quem fica há uma cadeira vazia. Um telemóvel sem rede, um quarto que ganha pó, um cão saudoso, uma história por contar… Que talvez fique por contar para sempre, porque se esquece a cumplicidade.
Alguém fica a contemplar o nada que quem foi deixou. O nada que não satisfez, que não fez ficar, que viu partir quem da vida quis diferente. Quem vai, por minha experiência, não sente saudade imediata, sente tudo o resto. O aperto e o abismo. Quem fica faz o luto físico, apoia a ida e molda-se à nova realidade. Imediatamente, abraça o vazio.
Vivem, todos eles e todos nós, quem fica e quem vai na terra de ninguém. Um pedaço de terra que emerge no mar emigrante. Vizinhos que não se veem perto ou comem juntos. Que sobrevivem da e pela internet. Que ignoram as horas que os separam. Crescem num limbo desconhecido, prolongam a sua existência. Como os ramos de uma árvore, onde o tronco é a base, o sólido, o comum e os galhos vão criando outros fados e existências. Assim vivem, ou viveriam, se o desejo de equilíbrio e de voltar atrás no tempo desaparecesse. No entanto, quando há um equilíbrio perfeito entre quem foi e quem espera que volta, decisões difíceis foram tomadas e alguém ficou a perder. Há sempre alguém que perde, na tentativa de preencher os vazios humanos. O que tenho aprendido com esta viagem emigrante é que é impossível viver no limbo, viver entre países. O momento de escolher chegará, o de viver para sempre lá fora e permitir que os galhos estiquem infinitamente, ou o de voltar. Mas quem volta deverá estar consciente de que não volta o mesmo. Que não é a pessoa que um dia foi e, assim como mudou, tudo o que ficou também. Resta a esperança nas boas memórias. Qualquer decisão é acertadamente bonita. É aceitar que se perde, seja a escolha qual for. É aceitar que se tenta perceber um futuro. Na terra de ninguém ou na terra mãe.
6 Comments
Este fez a lágrima correr.
As vezes digo que já não sei de que país sou…o coração é português mas será que eu seria a mesma tivesse eu voltado? Não sei! Estar longe é um constante aperto no coração…é perder natais em família, é ver pelo FaceTime as festas de aniversário…
As vezes uma pessoa questiona se perder tudo isso fez sentido…mas quando olho para o meu marido sei que sim. Resta agora um dia formar a nossa família.
A dor essa nunca passa.
Fogo!! Nem tenho palavras para descrever o que estou a sentir depois de ler este texto. Disseste tudo num pequeno texto, tão lindo, tão triste mas tão real. É tão difícil ser emigrante, é tão difícil viver naquele limbo que falas. E é tão verdade!! Eu vivo num limbo, eu vivo constantemente a ver a horas, para ver se já são horas decentes em Portugal para ligar às minhas sobrinhas, à minha irmã, à minha mãe e amigas. Eu vivo para celebrar o amor por vídeo chamada. As saudades são imensas ❤️
Que texto maravilhoso. Do lado dos que veêm à cadeira vazia é totalmente um sentimento de ninguém, de uma escolha, de um confiar, de um apoiar. Mas também estou do lado dos que ainda poderá haver essa vontade de ir, o sentimento da mudança! É um abismo de sentimentos!
Este senti cada vírgula, cada suspiro, cada segundo de quem foi e de quem ficou! Obrigada por este calor no coração!🧡
Conheço muito pouco desta realidade e no entanto conseguiste explicar muito bem a sua essência. És mestre nas palavras! Um beijinho, Marta
Muito bem descrito… quem volta não volta igual, mas quem fica também não é o mesmo… mas acredito que quem volta, volta mais rico, mais cheio, mais preenchido porque ousou sair, mesmo com medo, mesmo a tremer…