Este não é um feminista, não é um que nos faz a última bolacha do pacote dos géneros, não é um pedido de ajuda, uma escrita prova de que não somos inferiores ou um hino ao dia internacional da mulher. No meio destas letras falo da mulher, do amor que sinto em ser mulher, não só hoje mas todos os santos dias. Aqui, vais saber de outras mulheres, que me fazem parte, que me deram conteúdo, que conheço toda uma vida ou só por instantes. Aqui não estão mulheres que se veem nos filmes, nas notícias, se leem em livros ou se escuta na rádio. Aqui estão mulheres com quem partilhei, pouco e muito, que vi bem de perto e bem de longe. E eu, mulher também.
Não lembro o dia que me tornou mulher. Que descobri que era mulher. Sei que não aconteceu quando, à lâmina, rapei os pelos das pernas, ou quando dei o meu primeiro beijo, no banco do autocarro, ou quando a minha madrinha me beijou a testa e congratulou:

– Meu anjo, és uma mulher agora! – Olhei-a confusa, e pensei que se ser mulher era andar de fraldas sete dias por mês preferia ter parado no tempo.

Não me senti mulher quando perdi a virgindade, quando passava os verões a desbravar pistas de dança, quando tirei a carta de condução, quando me licenciei ou enverguei no mundo de trabalho.
Honestamente, não faço puto de quando me apercebi que era mulher, do que é ser mulher. Contudo, sei-o hoje que o sou. E que é um processo evolutivo, de descoberta e de aprendizagem, até ao dia em que deixar de habitar este corpo de fêmea.
Se me comparasse a um camaleão, é como se escondesse no corpo colorido partículas de todas as mulheres que me circundam. Como se fosse o epicentro de um terramoto progesterónico. E quanto mais conheço as facetas e façanhas femininas, mais me apaixono por elas.
As fêmeas que pintam as minhas memórias mentais, permitem-me criar um álbum fotográfico feliz e díspar. Da coragem à cara lavada em lágrimas, da paixão ao divórcio, da pobreza à emigração, da beleza à falta de carisma.
De bem perto vi mulheres que perderam filhos, miúdas que perderam a mãe, adolescentes que apanharam de bestas ignorantes, mães solteiras a atravessar oceanos e grávidas a trabalhar até ao último dia de gestação. Bem de perto vi também depressões pós-parto, anorexias, obesidades, autoflagelo, traidoras, traídas, mudanças de cor de cabelo, implantes mamários e injeções de colagénio nas rugas.
De longe também vejo, ainda mais vejo… Mulheres que esbracejam palavras telefónicas pelo ar, que gritam ao volante, que choram a ler livros, que falam alto, que estremecem na sala de cinema porque, se lembraram, que se esqueceram da roupa na corda e que cozinham, em exagero, para dividir pelas marmitas semanais. Vi mulheres que pintam apenas as unhas do dedo grande e do imediatamente seguinte, porque querem usar aquele sapato alto aberto nos dedos. A depilarem-se a mil à hora, a comer a andar, a cantar freneticamente no carro, a dar entrada no ginásio às seis da manhã, e antes do trabalho, e a dormir a ver as novelas. Já vi mulheres presidentes, vice-presidentes, camionistas, cabeleireiras, trolhas, pintoras, cozinheiras, atletas, lojistas, professoras, militares, modelos e polícias. Mães, avós, netas, tias e filhas. Casadas, divorciadas, viúvas e solteiras.
Vi mulheres a sacrificar a vida pessoal pelo trabalho, a viajar o mundo a solo, a serem mães sozinhas, a se divorciarem e a lutar por casamentos felizes. Vi também aquelas que se anulam, que se vestem como a sociedade aconselha, que usam anilhas no anelar, a camuflar a vida de solteira, só porque querem ser levadas mais à séria, que fingem gostar de cozinhar e que dormem no quarto ao lado com o recém-nascido.
As mulheres são forças da Natureza, mas isto não é um texto feminista.
As mulheres são os leões nesta problemática selvagem de géneros, mas isto não é um texto feminista.
Perdoem-me, mas que se lixe os atuais moralismos e a conotação pesada que o termo “feminista” alberga. Eu sou mulher. Escolheria ser mulher em todas as vidas, em todas as vezes que abrisse os olhos para o mundo. Mesmo com todos os privilégios que se tem em se nascer Homem, eu escolhia ser mulher. Sempre.
Fui criada por sete mulheres e quatro homens. E venho de uma família onde as mulheres são mais e duram até aos cem anos. Ensinaram-me tudo e insistiram no que me fazia feliz. Não sei coser um botão mas sei cozer abóbora, não sei depenar galinhas mas sei cavar terra, não sei amanhar peixe mas sei passar a ferro. Não sei rezar o terço, mas sei o credo de cor. Mas tudo o que sei, daquilo que deve moldar uma mulher para bênçãos matrimonias, pouco me importa. E o pouco me importar, foi também me ensinado pelas mesmas sete mulheres, e quatro homens. Dentro de casa, onde os ouvidos da sociedade não escutam.
E aprendi. Ah…se aprendi.
Ser mulher é desafiante e é vida. Ao mesmíssimo tempo. Engulo a dor e o ego, bato o pé, grito enraivecida, sou pouco calculista e muito hormonas. Não sou louca.
Sou lealdade e estratega, teimosia em forma de gente, amorosa, orgulhosa, irredutível e de mil estados de humor. Mas de uma só palavra.
Sou razão e arrogância, mau feitio e trabalhadora, pontual e insubornável. Tem dias que sou como manda a ocasião, tem outros que mando a ocasião à merda. Sou a calma na barafunda e sou a própria barafunda. Apaziguo e tiro do sério. Amo e odeio, quero perto e longe ao mesmo tempo, quero apego, compromisso e liberdade. Foi isto que me ensinaram em casa, a ser livre. A ser o que for para ser eu, para viver como eu, para me descobrir como ser humano. A todo o meu custo, e nunca à custa dos outros.
Ensinaram-me a ser feliz.

Bebo cerveja a ver jogos de futebol e deixo o bigode de espuma à vista. Como amendoins e tremoços, umas vezes à civil outras à jogadora de basquete a encestar na própria boca. Uso decotes, golas altas, vestidos curtos, túnicas até aos pés, sapatos altos e sapatilhas. Uso chapéus de aba larga e de pala para trás. Não fumo charutos ou cigarros mas gosto quando o fumo me foge pelos lábios. Bebo shots baratos e vinhos caros, como em tascos e em restaurantes finos. Pago ou divido contas de jantar, não gosto que paguem as minhas contas ou me insultem na rua com piropos abusivos. Jogo voleibol, ténis, damas e futebol. Limpo o ranho à parte de dentro da camisola e o batom ao lenço de pano. Exibo o peso que quiser e visto o que me apetece.
No espelho sou eu, e não tenho que ser todo o resto senão eu.

E nesta imensidão do meu eu, há mulheres responsáveis pela minha atual existência:
Vi a minha Carmélia perder o filho, e mesmo assim me sorrir.
Vi a minha Anna lutar pela vida, e nunca perder a bondade.
Vi a minha Alice desaparecer com um demónio canceroso, e nunca se ter queixado.
Vi a minha Alicia desfigurada de dor e a ganhar forças para me apanhar do chão.
Vi a minha Rita a cuidar-me e a amar-me, quando ela também precisava de tanto conforto.
Vi a minha Lisa contar da besta que quase a matou, só para me ensinar que bater nunca é amor.
Vi a minha Carol crescer dividida e a mostrar-me o que é estar em paz.
Estas são minhas, sou elas e delas.
E assim sou mulher.
Eu sou mulher.
Sou tão feliz por ser mulher, como não?

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Na galeria fotográfica, Ruben Arede

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